Por quem eles gritam?

Em 1968 foi promulgada por Costa e Silva, a Lei nº 5465, que ficou conhecida como a “Lei do Boi”. Essa lei reservava nos estabelecimentos de ensino médio agrícola e nas Faculdades de Agricultura e Veterinária mantidas pela União, preferencialmente 50% das vagas a candidatos agricultores, ou a seus filhos que residissem com suas famílias na zona rural e 30% a agricultores, ou seus filhos que residissem em cidades ou vilas que não possuíssem estabelecimentos de ensino médio.

A referida preferência, como chamou a lei, também beneficiava quem tivesse concluído o então “2º ciclo” nos estabelecimentos de ensino agrícola, candidatos à matrícula nas Faculdades de Agricultura e Veterinária, mantidas pela União.

Os beneficiados com as cotas previstas por essa lei foram na quase totalidade, filhos de grandes fazendeiros e pecuaristas.

Com raras exceções, como o ajuizamento de ações judiciais por candidatos preteridos no concurso, alegando terem os aprovados apresentado documentos inverídicos para se enquadrarem nos benefícios da lei, não se ouviu nenhum clamor da imprensa. Tampouco a parcela da sociedade que defende a meritocracia se inflamando contra as referidas cotas, alegando se tratar de privilégios descabidos ou absurdos. E, muito menos, algum clamor pela sua revogação.

A “Lei do Boi” foi revogada apenas em 1985, mais de 20 anos depois.

Em 2019, 51 anos depois da promulgação da “Lei do Boi”, portanto, o Banco Itaú selecionou 125 trainees. Segundo foto divulgada pelo próprio banco, que informou “mais de 72 mil pessoas se inscreveram no processo”, a quase totalidade das pessoas selecionadas é branca.

Novamente não se ouviu o clamor de parte da imprensa, nem da parcela da sociedade que defende a meritocracia, questionando se entre mais de 72mil pessoas não haveria mais pessoas negras com méritos para serem as selecionadas; e, muito menos, clamor pela realização de uma nova seleção.

Em uma entrevista à Revista Raça, no mesmo ano, a direção do banco Itaú informou, que iria aproveitar a experiência para fazer ajustes no processo seletivo.

Dia 18 de setembro de 2020, o Magazine Luiza abriu inscrições para seu programa de trainee e anunciou que aceitará apenas candidatos negros. Segundo a empresa, seu objetivo “é trazer mais diversidade racial para os cargos de liderança da companhia, recrutando universitários e recém-formados de todo o Brasil, no início da vida profissional”.

Agora sim, se ouve o grito daqueles que até então nunca reclamaram! Se ouve a reclamação daqueles que não enxergam discriminação na ausência de pessoas negras em universidades, em cargos de chefias de empresas, no Ministério Público, na Magistratura, no Legislativo, como protagonistas em filmes e; em seleções para trainees.

E tudo isso em um país em que 56,10% são negros e negras, mas são mais de 64% dos desempregados; 47,3% fazem trabalhos informais, contra 34,6% das pessoas brancas; apenas 4,9% das cadeiras nos Conselhos de Administração das 500 empresas de maior faturamento do Brasil são ocupadas por pessoas negras; o rendimento domiciliar per capta das pessoas negras é a metade em relação às brancas. Em 2018, 8,8% das pessoas viviam em estado de pobreza extrema, enquanto entre as pessoas brancas isso ocorria com 3,6%.

Eles gritam por eles!

Primavera de 2020.

Márcia Medeiros de Farias

Procuradora do Ministério Público do Trabalho