“Ricardos, Vânias, Macabéas e as estrelas invisíveis”

Ricardo e Vânia

Ricardo e Vânia

Nos acostumam a ler as mesmas histórias, a conhecer os mesmos protagonismos e aceitamos impassíveis esta repetição de lugares, de vícios narrativos e de personagens amordaçados em perfis lineares, normatizados.     

Cada novo texto que eu escrevo é uma tentativa de oferecer o que gosto de encontrar no que leio. Com o mantra franciscano de bússola me desafio a propor algo diferente, a criar uma nova textura, a suscitar outra perspectiva para algo, seja na companhia de outro objeto ou na experiência desafiadora de enxergar além da concretude limitante do que é visto.    

Enxergar diz muito mais sobre o olho do que sobre quem é visto ou ignorado. O momento de pandemia nos obrigou a repensar as relações e o bem-estar coletivo e serviu para descortinar a face mais egoísta e excludente de uma sociedade de superfícies estilhaçadas que caminha cega na altura do seu salto. Essa janela de reflexão foi aberta por minha atual leitura: “Ricardo e Vânia” (Todavia), do jornalista Chico Felitti. Não havia lido a matéria no BuzzFeed publicada por ele em 2017 que viralizou e deu origem ao livro, mas lembro vagamente de já ter ter ouvido falar de Ricardo (conhecido pelo apelido grosseiro de Fofão da Augusta).  

A extensa pesquisa feita por Chico se costura à sua vivência durante todo processo de escrita. A relação construída com sensibilidade e respeito a cada entrevista e a cada encontro (virtual ou físico) é a grande beleza da obra. O não-distanciamento narrativo a diferencia de um relato biográfico frio e habitual, sem fragilizar a estrutura jornalística num retrato tridimensional dessa história de amor marginalizada e fora dos padrões.                

Ao atravessar o imaginário popular o livro nos apresenta o cabeleireiro e maquiador sem alegorias, na essência do que o fez e das escolhas que o fizeram. O trajeto entre o “desconhecido”, o transeunte exótico do centro de São Paulo e o Ricardo Correa da Silva reafirma nossa facilidade em julgar, em não disfarçar o olhar da indiferença, a expressão do escárnio. Compartilhar a gentileza de uma palavra, quiçá um sorriso depende da beleza da casca. Imaginar as histórias e as pedras por trás da aparente decadência de mais um na imensidão paulistana é exigir muito de quem limitou as retinas.  

Conhecer a história de Ricardo e Vânia nos escombros do apogeu, da queda e dos seus caminhos antagônicos dá a real dimensão de como o palco da vida é um mistério que dá e tira na mesma proporção, e a plateia é a catarse efêmera que glorifica e esquece com a mesma facilidade. Os preconceitos, as violências, as censuras e os abandonos sofridos por eles, juntos ou separados, no interior, na capital ou em na finesse parisiense é resultado das histórias não-contadas no passado. 

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● A Hora da Estrela - Macabéa.

Ver obras literárias sobre personagens dissidentes, corpos inadequados e comportamentos em desalinho aos padrões ditos “normais” é uma mudança importante e significativa na literatura brasileira.

Quando a história se centraliza no lugar de fala tradicional as reverberações ficam encarceradas na redoma de uma só voz. Falar sobre essas narrativas que fazem do não-pertencimento das suas personagens um terreno fértil para provocar ruídos, e lembrar de “A Hora da Estrela” da Clarice Lispector é inevitável.

Assim como Ricardo e Vânia, Macabéa é um timbre desafinado que personifica o processo de invibilização social. Sua apatia habita letárgica a rua, o escritório, a pensão, suas próprias incertezas e nas mãos de Clarice ganha um contorno profundo e minimalista. Ela foge a cartilha das personagens fortes, heróicas, impetuosas. Sua força está justamente no extremo oposto a tudo isso, na fragilidade. 

Nos poros da existência da personagem como mulher, nordestina, até de certa forma sem a consciência do seu papel como tal, Clarice questiona a condição humana e, a tiracolo, os alicerces que a constituem socialmente. Macabéa cria um universo subjetivo de ícones de consumo, de status social e se conecta com muitas, que assim como ela, sentem na pele a aspereza e solidão da margem. Clarice e Suzana Amaral (diretora da adaptação cinematográfica do romance, falecida recentemente) criaram Macabéa por uma sensibilidade unissonante encantadora que Marcélia Cartaxo, na sua grandeza cênica, mergulhou nua e inteira na transposição de gêneros e almas.                                  

Contar e ler essas histórias são ações importantes na mudança de velhos hábitos e na construção de uma relação mais consciente e empática entre o que se conta e o que se vê. Essa semana assistindo uma live do preparador de elenco Luiz Mario Vicente com a atriz Andréia Horta ele citou uma frase da Adélia Prado que me soou muito forte e uso para encerrar esse texto:

“De vez em quando Deus me tira a poesia. 

Olho pedra, vejo pedra mesmo” (Adélia Prado). 

Nos embriaguemos de poesia para que sempre consigamos ver além pedra, além Deus.   

Felipe Ferreira

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