Se o corpo é preto, quem lembra? Quem vê?

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A escravização no nosso país, veja bem, usei o termo escravização porque o termo “escravidão” não contempla o horror do que foi esse período já que ninguém veio pra cá por livre espontânea vontade, como o termo ás vezes sugere. Foi um dos períodos mais nefastos que os brasileiros e a humanidade viveram. Até hoje, “colhemos os frutos” deste período. Uma disparidade violenta na educação, no dia a dia, nas instituições de ensino, no trabalho, nas empresas e na vida. Pergunte a uma mulher negra sobre a solidão e você entenderá (talvez) o que tento aqui em palavras descrever.

Sou nascida numa cidade do interior do Rio Grande Do Sul, colonizada por alemães. Ouvi as maiores barbaridades racistas que vocês não podem ter a ínfima idéia. E muitas vezes concordei com elas. Concordei no meu silêncio, ou rindo junto com o piadista inocente. Eu aprendi isso, isso vivenciei, isso meus pais e avós e toda a geração de pretos da minha família passou, e isso é o que dá um ar de normalidade a tudo, ou seja faz parte da norma, está correto. Mas não está.

Lembro de aos 7 ou 8 anos uma colega justificar o motivo de eu  estar levando o meu material escolar num saco de 5kg de açúcar :

- “tua mãe é negra, por isso tu não tem mochila”- disse ela.

Eu, fruto da miscigenação de uma negra e um branco, e de pele não tão retinta, passei a bradar a minha “morenice” e minha não negritude sempre que podia.

É assim que se fazia pra ser aceito, e assim que se faz até hoje.

Esse país é feito de alma indígena e sangue negro, mas ninguém lembra disso com orgulho ou faz disso uma bandeira.

As descendências ítalo -germânicas são sempre as exaltadas. Veja bem, não estou desmerecendo essas mãos que pra cá vieram e também ajudaram a construir esse país. Mas quando essas pessoas aqui chegaram, meus ancestrais já estavam aqui há décadas, e alguns deles ainda permaneciam, mendigando igualdade e sendo tratados da mesma forma da escravidão, já libertos, porém sem liberdade.

Pare para pensar e compare : os negros que aqui chegaram, trabalharam até a morte, os que foram libertos trabalharam livres também até a morte. Muitos imigrantes de outras descendências ganharam um pedaço de terra, e os que não ganharam certamente ganharam mais dignidade que os negros. Não há como negar, embora a história não conte com tanta exatidão. Hoje passado o 13 de maio , dia da libertação dos escravos ( nada a comemorar), continuamos vendo mil casos de racismo e sangue negro sendo derramado.

Lembro do episódio do infleuencer branco ( o sobrenome dele é branco ironicamente) mostrando “claramente” o racismo estrutural. Perceba que, no vídeo de desculpas e ele começa dizendo “quem me conhece sabe que eu sempre falo aquilo que penso”. Bingo. Apesar das desculpas, é exatamente assim e isso que você pensa. Negros e negras desse pais estão fadados a serem sempre isso. Reclamões e coitados sem opinião. Se tentam ser qualquer coisa que não isso, são mimizentos coitadistas e até (sic) racistas reversos. Entendo a influencer negra que ficou sem palavras, e quase sem entender.

O racismo tem esse poder. Ele nos trava, apavora, paralisa. E A GENTE CHEIA DE PALAVRAS PERDE TODAS ELAS QUASE HIPNOTIZADOS PELO ABSURDO.

Agora assistimos chocados a morte de uma adolescente de 14 anos, veja só, NEGRO, morto dentro de casa. Alias numa casa só com crianças, negras também. Todos se apavoraram-se, comoveram e solidarizaram, mas aos poucos se está esquecendo. Essa comoção toda, pra mim, pra nós negros, não passa de hipocrisia. Pois, nos querem assim sempre vítimas e chorosos dos nossos, para que assim o branco salvador possa desempenhar bem seu papel de branco salvador.

É como quando se ajuda um mendigo na rua. É uma boa ajuda, afinal, para quem não tem nada um pouco é muito. Mas a pessoa em condição de rua vai continuar sempre ali, pois não se faz questão alguma de algo mais efetivo. E pior, quem ajuda precisa ter suas ações de bondade bem expostas e mostradas.

Quanto ao influencer, com seu racismo esquecido, sabe porque isso incomodou tanto?

Porque ele foi exposto e descoberto, tal qual William Waac ( lembram), tal qual os atletas da seleção de ginástica, tal qual o caso da Cacau Protásio, até memo aqueles  ganhador do Nobel de medicina James Watson dizendo que “raça e inteligência estão conectadas”. O caso João Pedro e  tudo isso vais ser esquecido e vai voltar a esfera da normalidade, ou seja a norma. Vai dar “um branco”, em todo mundo. A norma é branca. No caso do blogueiro a norma branca diz que “isso foi um deslize”, ele não quis dizer isso”, “vão condenar o cara por isso olha quanta coisa importante ele fez”… e assim tudo volta a norma. E nós, a parte ofendida, seguimos feridos por dentro e muitas vezes estraçalhados por fora e mortos.

Nosso corpo preto é parlamentar, ele fala por si: toda vez que uma pessoa negra adentrar a qualquer espaço, esse corpo vai falar algo pra quem vê e geralmente é algo relacionado a norma branca. A escravização é um horror de culpa branca sim. E toda vez que você disser que não tem culpa nisso, pense em todos os comentários e situações racistas que você viu e nada fez, ou melhor, que você mesmo provocou. Minha voz aqui vai parecer um pio em meio a um grito de hienas. Mas vou continuar falando mesmo que ninguém ouça. Alguém vai ter de ouvir. Essa situação é só mais uma, ou tu vais me dizer que nunca tinha visto outra situação dessas e aí eu pergunto: o que você fez diante disso?

Toda vez que você pensar em “raça humana”, lembre-se da disparidade que vida que nós negros temos. Enquanto brancas falavam em feminismo, nós mulheres negras já estávamos trabalhando fora de casa cuidando dos filhos delas e limpando suas casas. Enquanto vocês estudavam nós trabalhávamos de sol a sol pra que vocês tivessem educação e nós calos nas mãos. Enquanto vocês comiam, amas de leite ofereciam suas tetas pra crianças brancas não morrerem de fome e não “deformar seus corpos”. Enquanto o padrão de beleza era branco e esguio, nossos narizes largos e cabelos crespos eram chacota e comparados a utensílios domésticos. Enquanto brancos são "finesse”, somos comprados a animais. Enquanto no bairro nobre há venda de entorpecentes, nas comunidades só há marginal e tráfico. Esse é o pensamento da norma.

Se você lendo esse texto fizer um exercício simples de fechar os olhos por um minuto e pensar na palavra “escravo” e “escravidão” e vier a sua cabeça  a imagem do negro, isso é racismo estrutural. Você não desligou nosso corpo dessa barbárie e vai sempre continuar tratando-nos assim, como propriedade e objetificando nossas vidas e nossos corpos. No mais pra nós negros tudo igual, amanhã haverá outra situação racista e talvez mais de uma. Pra vocês o lamento virtual, pra nós vida que segue normal.

Valéria Barcelos

Instagram @valeriabarcellosoficial