“Seja seu próprio patrão!” – Dominação e trabalho na era do aplicativo.

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No último dia 06, numa noite de sábado, o entregador Thiago de Jesus Dias sofreu um mal súbito enquanto fazia entregas para o aplicativo Rappi. Ao informar a cliente Ana Luísa sobre seu estado de saúde, ela lhe ofereceu assistência e comunicou a plataforma de entregas, que se limitou a pedir que fosse dado baixa no pedido, e informou que os próximos clientes seriam avisados do atraso de suas entregas. O Rappi não levou assistência a Thiago. 

Preocupada, Ana Luísa, agora com seus amigos, chamou um Uber. O Motorista, se recusou a carregar Thiago, já que este havia passado mal e podia sujar seu carro. O Samu, a polícia e os bombeiros também não apareceram. Ninguém queria "entregar” Thiago para um hospital. Os pedidos em seu nome, de socorro, não foram atendidos. A tarefa, coube a Ana Luísa e seus amigos, que o conduziram ao hospital das clínicas. Thiago morreu na segunda-feira, dia 08. Teve um AVC. 

Antes de querer esgotar o tema, pretendo neste espaço iniciar uma discussão que certamente merecerá ser prolongada, a qual perpassa não só pelas relações de trabalho que se desenvolvem em função da tecnologia, mas antes disso, em função dos rumos que a economia capitalista neoliberal tem seguido, com influência de, ou é agravado por, tais tecnologias. Para isso, é interessante também contar com vocês que aqui comparecem, para que digam como encaram tais serviços, se são usuários, se trabalharam para eles e etc. 

Conforme define de forma contundente o filósofo Sul Coreano Byung Chul Han:

VIVEMOS NUMA ERA NA QUAL A DOMINAÇÃO SOCIAL É EXERCIDA ATRAVÉS DO AUTOCONTROLE.

que é diferente da sociedade disciplinar, escrita por Foucault e outros filósofos dos anos 70.

 O mundo de hoje se caracterizaria por um tipo de dominação, que é consentida pelo próprio indivíduo. A exposição ilimitada nas redes sociais exemplificaria esse fenômeno, já que o controle não é exercido por uma disciplina rígida daquilo que se compreende como permitido, mas é oferecida uma falsa ideia de liberdade ilimitada, que, no entanto, impele a todos para padrões de comportamento idênticos. Assim, a dominação acontece pela total exposição; por todos verem a todos. O ser humano permite ser dominado – e controlado – de maneira voluntária, pois está sob o escrutínio permanente e por buscar sempre se adaptar aos padrões que emergem.

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Tal fenômeno está presente em todos os aspectos da vida cotidiana, e passa a fazer parte da lógica do trabalho. Por isso não são mais necessárias as rígidas amarras do controle disciplinar de antes, mas o controle é feito ao ser idealizado um novo tipo de trabalhador; o empreendedor de si mesmo. Este, deve ser flexível e se adaptar as mudanças. Deve ser um indivíduo cosmopolita, que busca a própria realização. O self-made man (o homem que se faz) é o modelo a ser seguido. Com isso, o cartão de ponto se torna obsoleto, assim como as divisórias do escritório; o homem é o responsável pelo controle do próprio trabalho, por sua produtividade e seus ganhos. Em certos casos, é até mesmo responsável da própria contratação, como no Uber ou Rappi. Ele trabalha em sua casa ou no próprio veículo. (Seja o próprio patrão!)

Essa lógica de trabalho, faz com que o indivíduo assuma o discurso - que é vendido para ele diariamente - de que é o único responsável pela transformação de sua vida e por criar as condições que permita atingir os seus objetivos, e, por outro lado, de que o pobre é o responsável pela própria pobreza. Disso decorre que, por ser a pessoa a única incumbida dos rumos da própria existência, o Estado e demais coletividades (Sindicatos, por exemplo) passam a ser vistos como desnecessários e, para além disso, como entrave para que o indivíduo possa desempenhar sua trajetória. (Precisamos flexibilizar a legislação trabalhista!

As pessoas são, então, levadas a viver à própria sorte, impelidas a criar todos os meios materiais para a sua vida, acreditando serem as encarregadas por vencer as incertezas do cotidiano e superar as crises dessa economia flexível. (Quem quer, consegue!)

Há somente um ponto que se mantém estável nesse cenário, que é a dominação pelo mercado de todos as circunstâncias da vida humana. Dominação, que se faz de maneira sútil, como Byung nos ensina, já que não é necessária a imposição de regras duras, mas que se faz através da experiência oferecida pelo trabalho, pelo auto empreendimento, por essa busca incessante de se adaptar e ter o perfil desse novo mundo (Seja líder, tenha paixão pelo trabalho, pense fora da caixa!) Todos, assim, se submetem as necessidades do mercado, através da falsa sensação de liberdade. Cada vez com menos direitos e num processo de individualização total da vida.  

No Século XIX, em razão da mudança das formas de produção e, consequentemente, de trabalho, que emergem da primeira revolução industrial, os trabalhadores se sujeitavam a jornadas exaustivas sem descanso e em péssimas condições locais; o trabalho infantil era indiscriminado. Hoje, motoristas de Uber dirigem por períodos exaustivos para que possam ter algum ganho significativo; no Rappi as entregas são ininterruptas, e seus entregadores pedalam incessantemente em meio ao arriscado trânsito brasileiro. Há algo a ser aprendido com a história. 

Após a morte de Thiago, o Rappi anunciou que estuda a criação de um botão de emergência na plataforma.

Arthur Spada

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Tarsila do Amaral

Tarsila do Amaral