Sobre o apagamento do protagonismo negro no Brasil

Espetáculo Negra Palavra - Foto: Mariama Prieto

Espetáculo Negra Palavra - Foto: Mariama Prieto

É muito fácil sair dos bancos escolares brasileiros acreditando que a princesa Isabel foi a grande responsável pelo fim do longo e horrendo período da escravidão no país. Nossa educação é eurocêntrica e apaga o protagonismo indígena e negro na construção do Brasil.

A lei 10.639, de 2003, que, assim como a abolição da escravatura, foi resultado da organização, mobilização e luta do movimento negro brasileiro, surgiu para mudar essa forma de contar a história. Ela torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. Bem como a lei 11.645, de 2008, que resgata o protagonismo indígena. Por causa da lei 10.639, eu, um homem branco, nascido com todos os privilégios que ser homem branco pressupõe, voltei aos bancos escolares em 2006.

Tive aulas com professores como Conceição Evaristo, Nei Lopes, Luena Pereira de Carvalho, Luiz Antônio Simas, e fui entendendo o protagonismo negro em todas as áreas de conhecimento, inclusive as tradicionalmente negadas, como as ligadas ao intelecto e às ciências. E fiquei me perguntando sobre o fenômeno do apagamento. Mais do que um fenômeno construído historicamente, queria entender como ele acontece no dia a dia. 

Eis que a Companhia de Teatro que dirijo firmou parceira com outra companhia de teatro, o Coletivo Preto. E, juntos, montamos o espetáculo Negra Palavra, a partir da poesia de um dos maiores poetas brasileiros do século XX, Solano Trindade. Solano também sofreu apagamento de sua história e obra, pois mesmo permanecendo vivo no trabalho de seus herdeiros, nunca teve o merecido reconhecimento.

O espetáculo Negra Palavra, composto por poesias de Solano Trindade, foi montado com o trabalho e o talento de 23 artistas: 21 negros e 2 brancos. E foi dirigido horizontalmente por 4 profissionais. Dois diretores assinam a direção geral, Orlando Caldeira e eu. Orlando também assina a direção de movimento e eu, o roteiro. André Muato assina a  direção musical. E Drayson Mennezes assina a direção de atores. 

Orlando, Muato e Drayson são profissionais admiráveis. Talentosos e competentes como poucos que vi nos meus 35 anos de teatro. E nossa condução coletiva foi permeada por respeito e carinho mútuos. 

Recentemente tivemos nossa primeira crítica publicada numa revista digital. O crítico que a assinou saiu do teatro exultante com o espetáculo que assistiu. E revelou que iria fazer uma excelente crítica, pois realmente havia ficado comovido. Na crítica, escrita no dia seguinte, pode-se perceber o quanto ele gostou do trabalho, mas também e mais importante, pode-se entender não só o fenômeno do apagamento, mas também o do racismo estrutural.

Racismo estrutural pois, mesmo partindo do princípio de que essa não foi a intenção, a forma de exaltar a poesia de Solano e se referir à população negra brasileira parte de estereótipos que limitam sua potência, desqualificam sua luta e que, como escreveu Rodrigo França em sua resposta a essa crítica, colocam o teatro branco como universal. 

Mas gostaria de falar sobre o apagamento dos outros diretores na crítica. Entendi na prática como a síndrome de princesa Isabel assola a mente das pessoas brancas nesse país. Enquanto eu fui colocado como o grande responsável pelo sucesso da montagem, os outros diretores apareceram apenas como colaboradores. Mesmo que os principais pontos mencionados sejam resultado do trabalho deles: a direção de movimento,  a direção musical e a direção de atores. E a harmonia do todo que é assinada, sem distinção de hierarquia, por mim e por Orlando, é atribuída a mim.

Espetáculo Negra Palavra - Foto: Mariama Prieto

Espetáculo Negra Palavra - Foto: Mariama Prieto

Eis o fenômeno do apagamento colocado em prática. Quando escrevo isso não tenho a mínima pretensão de escrever para as pessoas pretas, pois elas conhecem perfeitamente esse fenômeno no seu dia a dia. Escrevo para que as pessoas brancas nesse país possam refletir sobre suas ações e pensar duas vezes, mesmo quando bem intencionadas, se não estão reproduzindo atitudes e pensamentos que ajudaram a escrever a história de violência e apagamento que o Brasil perpetua há séculos sobre os povos indígena e negro no Brasil.

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