Sobre saúde: o que significa ser negro no Brasil?
Durante minha vida tenho tentado responder essa pergunta. Tenho 28 anos, nasci e moro em Brasília DF e sou estudante de Medicina em uma universidade particular. Além disso, sou negro. Tenho todos os traços marcantes da etnia: cabelo crespo, olhos e pele escuros, nariz largo e boca grande. Contrariando parte das estatísticas, faço parte da elite, pois tenho acesso ao nível superior e pertenço à classe média. Se a cor da minha pele não fosse importante e se o racismo não existisse, meu relato poderia parar por aqui. “Só que não”...
AFINAL, O QUE SIGNIFICA SER NEGRO?
A resposta para essa pergunta não é simples, envolve aspectos econômicos, culturais, biológicos e políticos. Para falar sobre isso, não podemos deixar de citar a história brasileira, em destaque a nossa origem colonial. O nosso processo de colonização foi caracterizado pela exploração comercial mercantilista e pela mão de obra escrava. Esse sistema foi parte do nosso desenvolvimento, e, mesmo após extinto, ainda produz reflexos perversos como a segregação e o racismo.
Nossa formação étnica
O negro é uma das principais matrizes étnicas da população brasileira. Estima-se que o Brasil recebeu cerca 5 à 6 milhões de escravos até o ano de 1867. Esse enorme contingente de negros foi capaz de modificar a composição do país.
Darcy Ribeiro, um renomado antropólogo nacional, em sua notável obra: “O povo Brasileiro”, refere que nossa matriz étnica é uma mistura entre o negro africano, o branco europeu (portugueses e imigrantes alemães, italianos, além dos amarelos asiáticos) e os diversos povos indígenas nativos do território brasileiro. No entanto, apesar do que se imagina, a contribuição da nossa matriz negra está longe de ser homogênea. Contou com pessoas de vários povos africanos que foram trazidos de diferentes partes do continente (Nigéria, Congo, Angola, Moçambique entre outras regiões do ocidente da África). Nesses povos existiam línguas, religiões, culturas e tons de pele diversos.
Diante disso, podemos imaginar o quão difícil é falar sobre raça/cor em um país tão diversificado.
Mas quem é considerado negro no Brasil?
Para os órgãos de censo populacional do Brasil, consideram-se negros todos aqueles os quais se autodeclararam pretos ou pardos. Entende-se que a autodeclaração remete à percepção de cada um em relação a sua própria raça/cor, e que isso implica considerar não somente os traços físicos, mas também a origem étnico-racial, aspectos socioculturais e construção subjetiva. Segundo o IBGE, em 2016, a população negra atingiu cerca de 112 milhões de pessoas (54,9% da população), contra 90,9 milhões (44,2%) de brancos.
O racismo no Brasil
Apesar do país possuir uma maior parte da população negra e da lei Áurea ter sido assinada há 131 anos, o racismo ainda está presente na nossa sociedade. Esse racismo ocorre não apenas de maneira direta (quando um indivíduo manifesta o racismo de forma consciente e deliberada), mas principalmente de maneira institucional.
O que quer dizer esse termo: “racismo institucional”? Ele se refere às formas como as instituições contribuem para a naturalizar e reproduzir desigualdades por um critério racial. Ele atua de forma difusa no funcionamento das instituições, que diferenciam a distribuição de serviços, benefícios e oportunidades, segundo etnia, influenciando inclusive nas políticas públicas. Ocorre, por exemplo, quando o governo oferece de forma desigual entre negros e brancos o acesso à saúde, à educação ou à segurança pública.
Um panorama sobre a saúde do negro: a perversidade dos Indicadores de saúde
O racismo institucional fica evidente quando analisamos alguns indicadores socioeconômicos, como por exemplo o acesso ao ensino superior e o atraso escolar. Segundo o IBGE, em 2015, entre os estudantes de 18 a 24 anos, uma parcela maior de negros (53,2%) encontrava-se em atraso escolar. Nessa mesma faixa etária, apenas de 12,8% dos negros cursavam ensino superior, bem abaixo dos 26,5% dos de cor branca.
Em relação às condições de domicílio, pretos ou pardos estavam 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos. Quanto à distribuição de renda, as diferenças são incontestáveis: segundo o IBGE, em 2014, dentro da parcela dos 10% mais pobres, 76% eram pretos ou pardos e 22,8% brancos. Já no outro extremo, ou seja, na parcela dos 1% mais ricos, apenas 17,8% eram pretos ou pardos, contra 79% de brancos. Isso significa que os negros são maioria esmagadora entre a parcela mais pobre da população e são a minoria entre os mais ricos.
Além disso, em relação ao rendimento médio anual, os trabalhadores de cor preta ou parda ganhavam, em média, em 2015, pouco mais da metade dos rendimentos recebidos pelos trabalhadores de cor branca. Diante desse contexto, não é de se espantar que o negro, no imaginário social, seja representado frequentemente como pobre, assim como o pobre é representado como negro.
O ponto mais marcante em relação à população negra está nos indicadores sobre mortes violentas. Quando analisamos a mortalidade, observa-se que o risco de uma pessoa (homem ou mulher) negra morrer por causas externas é 56% maior que o de uma pessoa branca. Caso seja um homem negro, esse risco é 70% maior.
Ademais, pretos ou pardos tem maior o risco de morte por homicídio em relação à população branca, independentemente da escolaridade, sendo que a essa diferença é maior nos grupos de alta escolaridade. Esse é um dado alarmante: Significa que um negro, mesmo com alta escolaridade, tem maiores chances de morrer por homicídio do que um branco.
Na população jovem, a violência desigual é ainda mais marcante. Segundo o Relatório Índice de vulnerabilidade Juvenil à Violência, em 2015, cerca de 54 % dos homicídios ocorreram em jovens, dos quais 71% eram negros e 92% masculinos. A chance de um jovem negro (homem ou mulher) ser assassinado é quase três vezes (2,7) maior do que a de um jovem branco de mesma idade. Em relação às mulheres, o risco relativo de ser vítima homicídio entre jovens negras é 2,19 vezes maior do que em uma jovem branca.
Do ponto de vista da saúde, a etnia traz uma série de questões: Os negros são a maior parte dos usuários do SUS e os que mais dependem dele.
Em relação à mulher negra:
Elas la possui um pior acompanhamento tanto no serviço de pré-natal e quanto na realização da mamografia (importante ferramenta no combate ao câncer de mama).
A sífilis gestacional atinge mais mulheres negras.
As mulheres negras tiveram quase o dobro das mortes maternas das mulheres brancas em 2012. Sobre isso, a morte materna é um importante indicador de baixa qualidade do sistema de saúde, principalmente porque 90% dessas mortes ocorrem por causas evitáveis.
Em relação às doenças infecciosas, as mortes por tuberculose, hanseníase e dengue são maiores em negros do que em brancos. Os casos de doença de chagas atacaram mais pretos, seguidos por pardos, com maiores mortalidades nessas populações. Além disso, algumas doenças envolvidas com fatores hereditários e genéticos têm maior propensão a ocorrerem em negros: anemia falciforme, diabetes e pressão alta.
Em suma, dá pra ter uma ideia de como é difícil ser negro no Brasil, em especial quando enfocamos a saúde dessa população.
Como enfrentar?
A primeira forma de enfrentamento para um problema é reconhecê-lo. Assim, o simples reconhecimento da existência do racismo é fundamental. Por ser miscigenado, o Brasil guarda dentro do imaginário social uma ideia historicamente construída de que as raças/etnias convivem em perfeita harmonia. Nesse contexto, permanece o equívoco de que não exista racismo no Brasil ou de que ele seja abrandado por essa miscigenação. Essa ideia é denominada como o “mito da democracia racial” e age como limitadora do enfrentamento do racismo.
DESSA FORMA, PARA ENFRENTAR O RACISMO, É NECESSÁRIO COMBATER ESSES MITOS. PARA TANTO, A ADOÇÃO DO QUESITO RAÇA/COR NOS CENSOS POPULACIONAIS E NOS INSTRUMENTOS DE PESQUISA EM SAÚDE É UMA FERRAMENTA MUITO IMPORTANTE USADA PELO ESTADO.
Outra forma de luta reside na criação de políticas públicas voltadas para o tema. Umas das políticas já existentes é a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que tem como principal objetivo reconhecer as vulnerabilidades do negro e promover a saúde dessa população.
A minha própria luta:
Pessoalmente, falar sobre racismo é um desafio de autoconhecimento, mas isso sempre foi estranho aos olhos de quem conhece pouco sobre o tema, pois frequentemente sou contestado com a ideia de: “você não é pobre, portanto não sofre racismo”. Frente a esse argumento, poderia citar algumas estatísticas, mas para o cotidiano é cansativo recorrer aos dados a todo momento. Por isso, me limito ao meu relato.
Quando criança, ainda não tinha noção sobre a identidade negra. Como muitos de nós, meu cabelo era visto pelos outros como “ruim” e isso fazia com que eu o preferisse curto. Quando adolescente, entretanto, comecei a questionar isso. Deixei meu cabelo crescer. Usei black power, rastafári e traça raiz, como forma de autoafirmação. Estudava em um colégio religioso e era constantemente coagido a cortar meu cabelo, pois tentavam me convencer de que cabelo curto era sinônimo de organização e disciplina (como se eu não fosse organizado e nem disciplinado).
Fui crescendo e amadurecendo minha identidade. No meu primeiro vestibular, concorri a uma vaga no curso de enfermagem na Universidade de Brasília (UnB) pelo sistema de cotas raciais. Consegui a vaga no meio do meu terceiro ano e iniciei minha graduação. Muitos me questionavam sobre o porquê eu concorri a esse sistema se eu tinha condições financeiras. Quando eu estava disposto (mas nem sempre), conversava sobre a diferença entre as vulnerabilidades determinadas pela renda e as determinadas pela cor. O acesso ao nível superior é um privilégio com importante discriminação racial. Quando entrei na universidade isso ficou evidente, pois era possível perceber a esmagadora maioria de brancos em detrimento de negros.
Citar todas as situações nas quais me senti ou me sinto discriminado seria cansativo, mas acho importante destacar que o preconceito, em grande parte das vezes é velado. São situações difíceis de explicar para pessoas que nunca sofreram isso, pois se tratam de sentimentos internos. Eu sinto o preconceito, por exemplo, quando estou de jaleco, na entrada do hospital, e o segurança me cobra o crachá, olhando bem a minha foto para saber se sou mesmo estagiário de medicina.
Eu me incomodo com o fato dos meus colegas brancos, diferentes de mim, nunca terem passado por isso. Também me incomoda aquele olhar do segurança da loja que te acompanha como se você fosse suspeito, ou do olhar das outras pessoas quando o sensor apita na saída da loja (quando não foi comigo que o sensor apitou). Sinto incômodo com o fato de, em lugares públicos, shows, parques e até mesmo na faculdade, frequentemente me abordarem para me pedir cigarro, isqueiro, maconha ou drogas. Eu não fumo, bebo pouco, não uso drogas ilícitas e sou alérgico a qualquer tipo de fumaça.
Uma vez estava na faculdade, no bosque com meus amigos (na maioria brancos), conversando e rindo quando um desconhecido qualquer me interrompeu perguntando se eu tinha maconha ou se eu sabia onde vendia. Achei isso curioso, pois, dentre de todos da roda, ele me escolheu para perguntar. Repreendi o rapaz e segui minha conversa.
Em alguns momentos o racismo se revelou mais marcante. Já na minha segunda graduação, no curso de medicina em uma faculdade particular, me deparei com situações desse tipo. Percebi que era um dos únicos negros do curso de medicina e um dos poucos de toda a faculdade. O episódio mais traumático dessa época foi quando fui chamado de “pretinho sem noção” por um professor, no meio de uma aula. O caso ocorreu em um tom satírico, entretanto isso foi grave, pois tive que citar o imperativo categórico de Kant para um professor de filosofia, no meio de uma aula de filosofia, para mostrar o quanto havia ficado ofendido com o comentário. É triste, mas quando se trata de racismo, nós temos que gastar energia para brigar por coisas que deveriam ser naturais, como o respeito, por exemplo.
Por fim, concluo com o seguinte destaque: todas essas situações ocorreram independentemente do jeito que me vestia, do carro que eu andava, do ambiente que frequentava ou da classe social da qual parecia pertencer. É claro que com esse relato eu não estou negando que as classes sociais menos favorecidas tenham maior exposição a problemas específicos, os quais eu nunca enfrentei. Apenas estou argumentando que a questão racial transcende classes sociais. Nós negros carregamos essa “farda” da qual somos indissociáveis. Em qualquer lugar, teremos nossos traços marcantes como vitrine e infelizmente vivemos em um país no qual sofremos consequências severas por isso.
Paulo Frazão
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PAULO HENRIQUE DA SILVA FRAZÃO
GRADUADO EM ENFERMAGEM PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB). GRADUANDO EM MEDICINA PELO CENTRO UNIVERSITÁRIO UNICEUB. ALUNO BOLSISTA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA PELO UNICEUB. INTEGRANTE DA LIGA ACADÊMICA DE MEDICINA E ESTILO DE VIDA DO UNICEUB (LAMEVU).
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E-MAIL: PAULOHF91@GMAIL.COM
Bibliografia:
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