Breve Viagem Pela Literatura Negra Brasileira
Começo essa viagem perguntando o que é ser branco no Brasil?
Ué, mas o combinado na coluna passada não era continuar a espiral da literatura que faz companhia a todos os que amam ler? Sim, mas é que as duas coisas estão intimamente ligadas. A compreensão de que é preciso perguntar o que é ser branco no Brasil veio, justamente, da viagem por uma outra literatura. A literatura negra brasileira.
A professora Conceição Evaristo guiou-me por essa e outras perguntas que nunca havia me feito. Qual o ponto de vista de quem escreve o que leio? O que está impregnado nas literaturas, além das histórias que estão sendo contadas? Quem são os escritores negros brasileiros? E, sobretudo, como as pessoas negras aparecem nos livros que já li?
Perguntas simples, com respostas que podem ser simples também. Mas é preciso coragem para enfrentá-las. Se você estiver disposto a desnaturalizar (descolonizar) a sua leitura, convido você para uma viagem reveladora pela literatura negra brasileira.
Você pode começar pelo quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus. Talvez se surpreenda: as pessoas que são invisíveis no seu dia a dia, pois se confundem com a pobreza e as tarefas de limpeza, também têm sonhos, desejos, poesia. Inclusive recomendo a bela biografia escrita por Tom Farias.
Depois, entregue-se ao amor e à luta nas palavras de Solano Trindade, o poeta do povo. Sua trajetória de Recife a Embu das Artes em nome da identidade negra e da cultura popular. E, se quiser voltar ainda mais no tempo, descubra a primeira escritora brasileira, Maria Firmina dos Reis, ou outros pioneiros como Adão Ventura, Auta de Souza, Cruz e Souza, Luís Gama e Paula Brito.
Seguindo a viagem, abram alas para os grandes Machado de Assis, Lima Barreto, Abdias do Nascimento! Chega de branquear os escritores negros, tratá-los como marginais, relegá-los aos pés de página. E, se você ainda tem preconceitos com as religiões de matriz africana, deixe-se levar pela sabedoria de Mãe Beata de Yemonjá, Mãe Stella de Oxóssi e Mestre Didi.
Conceição abriu portas importantes não só como professora, mas, também, como escritora. Tornou-se conhecida nos Cadernos Negros, do essencial grupo Quilombhoje. Sua literatura ganhou mundo com Ponciá Vicêncio, e hoje, todos temos acesso aos becos de sua memória. E a um mundo de outras escritoras: Ana Maria Gonçalves conta a verdadeira história do Brasil através de sua obra prima um defeito de cor. Eliana Alves Cruz lava nossa alma com sua água de barrela. Cristiane Sobral decreta que não vai mais lavar os pratos. O semelhante de Elisa Lucinda é um clássico contemporâneo. Miriam Alves abre caminhos com seu Brasil afro autorrevelado. E a lista de escritoras pretas segue crescendo: Ana Cruz, Ana Paula Lisboa, Bianca Santana, Carolina Rocha, Cidinha da Silva, Débora Almeida, Débora Garcia, Elaine Marcelina, Eliane Marques, Elisa Pereira, Elizandra Sousa, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Geni Guimarães, Jaciana Melquíades, Janaína Abílio, Janaína Damaceno, Jarid Arraes, Jennyfer Nascimento, Jussara Santos, Lia Alves, Lívia Natália, Mel Adún, Nina Rizzi, Nívea Sabino, Raquel Almeida, Rita Santana, Sol Miranda, Taís Espírito Santo, Tatiana Nascimento, Verônica Bomfim, ...
Seguindo a viagem, o sol na cabeça de Giovani Martins deixou muita gente de moleira quente. Os quadrinhos de Marcelo D’Salete mudam a perspectiva de Palmares com Angola Janga. Aldri Anunciação levou sua ironia para o teatro com Namíbia não. Lázaro Ramos faz sua pele brilhar além dos palcos e telas. Martinho da Vila faz sua voz brilhar além das músicas que compõe. Ademiro Alves (Sacolinha) propõe 85 letras e um disparo. Ernesto Xavier também nos conta o que sentiu na pele. Allan da Rosa pergunta Zumbi assombra quem? O grande Grande Othelo desejou bom dia às manhãs. Mestres como Nei Lopes seguem iluminando corações e mentes.
E como corações e mentes devem ser iluminados desde cedo, você pode viajar também pela literatura para crianças com Carmem Lúcia Campos, Cássia Valle, Cátia Luciana Pereira (Catita), Flávia Souza da Cruz, Heloisa Pires Lima, Inaldete Pinheiro de Andrade, Josias Marinho, Julio Emílio Braz, Junião, Kiusam de Oliveira, Lavinia Rocha, Madu Costa, Maurício Pestana, Neusa Baptista Pinto, Oswaldo Faustino, Patricia Santana, Rogério Andrade Barbosa, Sonia Rosa, ...
Abrindo mais o leque, experimente ler algumas intelectuais negras que balançaram e seguem balançando as estruturas desse país: Ana Flávia Magalhães, Antonieta de Barros, Carla Akotirene, Djamila Ribeiro, Helena Theodoro, Joice Berth, Juliana Borges, Katia Costa Santos, Lélia Gonzalez, Nilma Lino Gomes, Reimy Solange Chagas, Ruth Guimarães, Sueli Carneiro, Virgínia Leone Bicudo, ...
Ou intelectuais negros, como Andrelino Campos, Antônio José do Espírito Santo, Izak Dahora, Joel Rufino dos Santos, Joel Zito Araujo, Julio Cesar Medeiros, Kabengele Munanga, Milton Santos, Muniz Sodré, Oswaldo Faustino, Ramatis Jacino, ...
Sem falar no impressionante número de poetas, como Abelardo Rodrigues, Abílio Ferreira, Aciomar de Oliveira, Aloísio Resende, Alzira dos Santos Rufino, Anelito de Oliveira, Antonio Caos, Antonio Vieira, Arnaldo Xavier, Bernardino da Costa Lopes, Carlos de Assumpção, Carlos Machado, Celinha, Carlos Correia Santos, Cuti (Luiz Silva), Cynthia Dorneles, Domício Proença Filho, Edmilson de Almeida Pereira, Edson Lopes Cardoso, Eduardo de Oliveira, Éle Semog, Elio Ferreira, Gil Sevalho, Guellwaar Ardún, Hermógenes Almeida, Ivan Cupertino, Jamu Minka, Joba Tridente, Jônatas Conceição, Jorge Claudir, José Carlos Limeira, Lande Onewale, Lepê Correia, Lino Pinto Guedes, Louis Carlos Mello, Lourdes Teodoro, Mario Athayde, Michel Yakini, Narciso Lobo, Neide Almeida, Oliveira Silveira, Oswaldo Camargo, Oubi Inaê Kibuko, Paulo Colina, Paulo Valente, Paulo Sabino, Ricardo Aleixo, Ricardo Dias, Ronald Augusto, Ruth Souza Saleme, Salgado Maranhão, Sérgio Ballouk, Sérgio Varela, Tetê Catalão, Waldemar Euzébio Pereira, ... Impressionante, não? Impressionante também, que, talvez, você nunca tenha ouvido falar de nenhum deles.
E, para essa viagem tornar-se ainda mais emocionante, reveja seu conceito de homem universal com a filosofia de Renato Noguera e o poder do pensamento de Aza Njeri e Katiúscia Ribeiro. Você certamente entenderá o quanto é eurocêntrico. E o quanto ser eurocêntrico empobrece sua própria vida e o mundo. Ah, Aza também é poeta e Renato também escreve para crianças.
Desculpe se, nesse roteiro de viagem, citei muitos nomes. Sei que textos assim costumam ser enfadonhos de ler. Mas uma pergunta que geralmente ouço é: “Mas há escritores negros no Brasil?”
Não dá mais para negar que somos um país de grandes escritoras e escritores negros! Não é possível mais aceitar os lugares “naturalizados” de subalternidade e, muito menos, a ausência de subjetividade que as pessoas negras, via de regra, ocupavam e ocupam nos romances escritos por brancos.
Estamos tão mergulhados na crença de que este país pertence a nós, brancos, que as maiores barbaridades seguem sendo cometidas em nome da naturalização dessa posse. Em nosso “país de brancos”, os povos indígenas são dizimados desde o início do século XVI, quando invadimos suas terras pela primeira vez. Em nosso “país de brancos”, os povos negros foram sequestrados por séculos para serem escravizados. Tratados como coisas, animais. E, tanto negros como indígenas, seguem sendo alienados de grande parte de seus direitos, entre eles, muitas vezes, o de sobreviver.
Ter acesso a essas literaturas me fez refletir sobre que branco eu quero ser. Continuar naturalizando essa violência estrutural? Ou lutar diariamente contra o racismo?
Para terminar, apenas uma ilustração: Monteiro Lobato em seu fabuloso Sítio do Pica Pau Amarelo colocou “naturalmente” a Tia Anastácia (preta) na cozinha e Dona Benta (branca), como a dona do sítio. E, na hora de lançar um livro de receitas, o livro chamou-se: Dona Benta.
P.S.: Para uma viagem mais completa, aconselho a leitura das colunas, também neste blog, dos queridos Renato Noguera, Tatiana Tibúrcio, Valéria Barcellos e do convidado especial da semana, Paulo Frazão.
Renato Farias
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