Terça-feira à tarde
Terça-feira à tarde é o dia que eu tenho que entregar o texto para o Coletivo Indra. A cada quinze dias, às terças-feiras à tarde. Durante toda a semana anterior eu tentei pensar no que fazia sentido escrever. Virei e mexi. Nada. Li o texto do Antônio Prata. Como ele consegue? Tirar uma coluna deliciosa de um passeio com o filho e um encontro inesperado com “o” hippie. Quisera eu ter tamanha habilidade.
Terça-feira à tarde. O tempo tá correndo. É ócio criativo que fala? O que será que aconteceu? Não pode ser falta de assunto. Será esvaziamento cerebral? Olho para os cachorros, não me vem nada. Olho para o teto. Branco. Invoco agora os meus mentores intelectuais e criativos. “Oh Carlos Drummont, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Amós Oz...”. Tão grande o meu desespero que tento invocar até os vivos... “Mia Couto, Carlos Ruiz Zafon, Luis Fernando Veríssimo”. Desastre.
Terça-feira à tarde. Nada tem acontecido? O nada se faz constante. Será?
As olimpíadas acabaram, hoje começam as paralimpíadas e ninguém comenta sobre. Nada diferente do esperado nesta sociedade pouco empática.
A CPI continua, o que expõe cada vez mais o escândalo das vacinas e a nossa desarticulação no enfrentamento da pandemia do Covid-19.
Bolsonaro pede impeachment de Alexandre de Moraes e tem oficial da reserva convocando invasão ao STF no 7 de setembro. O berrante toca e o gado muge.
A gasolina a 7 reais. Não tive coragem de encher o tanque – vou encher o pneu da minha bicicleta.
O preço dos alimentos no supermercado exorbitante. Parece até que a feira do mês está sendo feita nas lojas do aeroporto.
Fiéis da igreja católica ofendendo o padre Júlio Lancellott (São Paulo) e padre Lino Allegri (Fortaleza) por ajudar os pobres e condenar o atual governo. Podemos citar aqui Dom Helder: “Quando dou comida aos pobres me chamam de santo, se pergunto porque são pobres, me chamam de comunista”.
Muitas coisas acontecendo, mas pouco estímulo e força para retratá-las. Parece que a gente, há anos, gira em círculo. A impressão é que já estivemos exatamente aqui.
“Enquanto esses comandantes loucos ficam por aí
Queimando pestanas organizando suas batalhas
Os guerrilheiros nas alcovas preparando na surdina suas
Mortalhas
A cada conflito mais escombros
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Entra ano, sai ano, cada vez fica mais difícil
O pão, o arroz, o feijão, o aluguel
Uma nova corrida do ouro
O homem comprando da sociedade o seu papel
Quando mais alto o cargo maior o rombo
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Eu dando milho aos pombos no frio desse chão
Eu sei tanto quanto eles se baterem asas mais alto
Voam como gavião
Tiro ao homem tiro ao pombo
Quanto mais alto voam maior o tombo
Eu já nem sei o que mata mais
Se o trânsito, a fome ou a guerra
Se chega alguém querendo consertar
Vem logo a ordem de cima
Pega esse idiota e enterra
Todo mundo querendo descobrir seu ovo de Colombo
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos”
Zé Geraldo, “Milho aos pombos”, 1981.
Rafaella Albuquerque
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