Trump, Bolsonaro e dissonância cognitiva

Charge do Aroeira (Jornal O Dia/RJ)

Charge do Aroeira (Jornal O Dia/RJ)

Quais as diferenças e semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro?

“No ano de 2019, Trump era presidente dos Estados Unidos da América e Jair Bolsonaro estava na presidência do Brasil. Em comum, expoentes da nova extrema direita mundial. Estilos diferentes, mas, parecidos.” Desse modo, poderíamos começar uma narrativa sobre esses dois fenômenos políticos, ambos já gravados na história das primeiras décadas do século XXI. Não são dois demônios, tampouco anjos. 

Quem nos ajuda a compreender os porquês de Trump ter sido eleito em 2016 foi Scott Adams com o livro Win Bigly  traduzido como Ganhando de lavada. Não custa lembrar queAdams é responsável pelas tirinhas do personagem Dilbert. O mais interessante é que quando Trump apareceu na disputa durante as prévias, quando praticamente toda imprensa o achava um brincalhão pitoresco e animador de  programas de auditório, Adams cravou: “Trump já ganhou”.

Do mesmo modo quando Bolsonaro despontou, muitos analistas diziam que o capitão reformado não tinha chance alguma, ele era um deputado federal do baixo clero sem apoio na classe política e envolvidos em várias polêmicas politicamente incorretas. Na ocasião, Rodrigo Gueron, doutor em filosofia e professor da Faculdade de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cravou: “Bolsonaro já ganhou”. 

O que Adams e Gueron perceberam antes da maioria dos analistas? 

Intuição, compreensão da conjuntura e diversos outros fatores. Mas, existem fatores psicológicos. As massas sedentas por soluções quase mágicas e fantásticas e lideranças carismáticas embarcaram nas palavras de dois bons vendedores. Podem dizer qualquer coisa, mais Trump é um bom vendedor e Bolsonaro não fica atrás. Eles são enfáticos, assertivos de um modo que parece transformar algumas ideias muito difíceis de digerir em soluções incríveis.

De qualquer maneira, existem fatores emocionais, existem elementos psicológicos que ajudaram Trump e Bolsonaro em suas eleições. Nem vou desenvolver longamente o raciocínio a respeito das carências e de um desejo autoritário de ser portador da verdade que está presente nos corações humanos magoados, Trump e Bolsonaro representam o homem branco durão, machão que  gosta de armas, casa com mulheres mais novas, provedor e que não leva desaforo para casa. Os dois encarnam bem esse arquétipo.

Agora imaginem se fosse um homem negro com o discurso do Bolsonaro? Ou uma mulher negra? Mesmo se fosse uma mulher branca? O que dizer se pessoas indígenas fizessem o discurso bolsonarista?

Óbvio que tem de tudo; mas, para vender essa truculência discursiva de mandar a imprensa  calar a boca (Bolsonaro) ou de imitar uma pessoa com paralisia cerebral e rir como se fosse piada (Trump) tem que ser homem branco adulto e heteronormativo para funcionar.  Os dois são símbolos do patriarcado ocidental.  É sempre mais difícil incriminar um homem branco heterossexual. Geralmente, eles sempre conseguem tomar a palavra e calar os adversários com mais facilidade. Não precisam de muitas credenciais para isso, porque são homens adultos, são brancos e são heterossexuais. 

Isso tudo ajuda (e muito), mas, o elemento que elegeu tanto Trump como Bolsonaro foi um fenômeno de caráter psicológico. Para melhorar a nossa compreensão, podermos recorrer a uma boa formulação teórica. Afinal, um pouco de estudo não faz mal a ninguém. O pensamento que ilumina o problema é do  psicólogo estadunidense Leon Festinger (1919-1989), orientado no doutorado por uma das grandes referências da psicologia social em seu surgimento, o psicólogo alemão Kurt Lewin (1890-1947) criador da teoria do campo. Algum tempo depois do seu doutoramento na Universidade de Iowa em 1942,  Festinger trouxe para o público a teoria da dissonância cognitiva.

Em linhas gerais, a teoria diz que algumas pessoas mesmo quando seus argumentos entram em contradição; elas fazem de tudo para reafirmar suas ideias e crenças. Numa situação em que as ideias “não batem bem” (falta lógica e coerência), algumas pessoas preferem esquecer a realidade dos fatos do que admitir que estão erradas. Diante da dissonância cognitiva elas acham algo “verdadeiro” para justificar uma ideia “falsa”. Diante de evidências de que estão erradas, usam isso como prova de que estão certas. Pode até parecer estranho, mas, é isso mesmo.

Uma pessoa em dissonância cognitiva usa os elementos que contrariam suas teses como formas de confirmar a verdade de seus argumentos. Por exemplo, uma pessoa adepta do terraplanismo diante de evidências irrefutáveis de que o Planeta terra não é plano, acaba por considerar exemplos como diferença de fuso-horário nas mais diversas regiões do globo como uma confirmação do seu raciocínio, quando é exatamente o inverso. A existência de diferentes horários é a confirmação de que o sol não ilumina todo o planeta da mesma forma, o que aconteceria se a Terra fosse plana.

A teoria da dissonância cognitiva dá conta de expectativas não confirmadas. Diante de uma decepção, a pessoa em dissonância faz de tudo para achar um meio para confirmar a sua fantasia. Um exemplo dissonância cognitiva, uma pessoa nos anos 1990, comprava CDs piratas (uma ação fora da lei); mas, insistia em se dizer completamente honesta, apesar de cometer atos desonestos usando subterfúgios como: “CDs são muito caros, é um absurdo!”. Pessoas em dissonância cognitiva atuam em padrões de oposição e polarização. O mais importante não é a verdade dos fatos; mas, confirmar a sua crença.

Uma pessoa justifica a sua posição, forja um argumento para apoiar projetos inconsistentes. Por exemplo, se um candidato é eleito com a pauta da honestidade e anticorrupção acaba praticando atos antes criticados, o eleitorado em dissonância cognitiva encontra uma justificativa. Tal como uma pessoa viciada em cigarro e diante de riscos para saúde, vai preferir justificar seu  hábito do que parar de fumar, “eu fumo menos de um maço por dia”, “eu nem trago” ou similares.

O núcleo duro do eleitorado de Trump e Bolsonaro têm muitas coisas em comum, justificam a dissonância cognitiva de qualquer maneira. Não importam as evidências de que no ano primeiro trimestre de 2020, as ações dos dois governos foram ineficazes para conter a crise sanitária advinda da Covid-19 e as medidas econômicas nos dois países foram insuficientes e muito tímidas para conter o desemprego. Os números dizem isso; mas, não tem jeito.

Trump e Bolsonaro nasceram e cresceram politicamente investindo em um imaginário cheio de teorias da conspiração e fantasias mirabolantes. Os fatos não importam muito, porque a crença ideológica está acima da lógica e do bom senso. Sem dúvida, seguir uma receita rígida de que opiniões ideológicas valem mais do que argumentos científicos ajuda a levar um país para o buraco num contexto de pandemia. As convicções neoliberais da Escola de Chicago que ambos defendem não parece ser uma boa saída nesse momento. Ora, aplicar a lei da livre concorrência e da autorregulação do mercado num momento de crise sanitária global é como achar que fumando charuto uma pessoa vai se curar de enfisema pulmonar. Eles não irão arredar pé de suas convicções, todo o resto seria “comunismo” ou coisa do tipo.

Por isso, Trump e Bolsonaro podem entrar para história como dois grandes exemplos de políticos que colocam suas crenças acima da razão. Eles são homens assustadores, deixam os rivais atônitos, o jornalismo profissional  perplexo, negociam sem querer ceder e batem nos adversários com todos os tipos de golpes, incluindo os altos (os baixos sempre). Os dois partem de uma dissonância cognitiva gravíssima: são políticos que se dizem não-políticos. O papo furado da antipolítica apareceu na campanha dos dois. Pois bem, se não fossem políticos não estariam num cargo político! É como uma pessoa nua em praça pública pedir que admirem seu traje novo, nua se diz vestida. Quem faz isso é capaz de tudo. Para seus rivais, ousamos dizer: não tem tipo mais difícil de combater do que as pessoas que mentem acreditando na mentira. Eles sempre arrumam um ou mais culpados para suas falhas, só assumem os “acertos”, para tudo que dê errado, existe  algo ou alguém para culpar, “a Organização Mundial de Saúde (OMS) está fazendo um péssimo trabalho diante da pandemia”; “os governadores e prefeitos são responsáveis por paralisar a economia”.  Bons líderes assumem tudo que dá errado e atribuem os acertos ao processo coletivo e colaborativo. Trump e Bolsonaro fazem exatamente o inverso.

Sem dúvida, numa modesta análise crítica, a reeleição de Trump não será boa para os Estados Unidos da América (ainda que ele tenha feito políticas de reindustrialização para reposicionar a América diante da poderosa indústria chinesa); a reeleição de Bolsonaro não será boa para o Brasil. Mas, não será surpresa se ambos forem reeleitos. Nós podemos registrar em Junho de 2020, ambos  já são favoritos. Afinal, é sempre bom aprender com o passado. No Brasil, muita gente da Direita moderada e de toda a Esquerda não levou fé em 2018, insistiam que “Bolsonaro iria desidratar”. Nos Estados Unidos da América, achavam que Hillary Clinton, ex-primeira dama, política experiente e articulada com o mercado financeiro de Wall Street levaria de lavada.  

Vale a pena repetir. A questão também é psicológica, é muito difícil brigar contra quem justifica dissonância cognitiva e ainda por cima é o protótipo do patriarcado ocidental, homens brancos barbeados, “durões”, casados com mulheres brancas magras e com idade para serem suas filhas; os dois pertencem à Direita da Igreja do Deus Mercado, adeptos da meritocracia, são fiéis que só rezam com gente que venceu na vida ou com as  pessoas que acreditam que o excesso de esforço é sinônimo de sucesso, a plateia deles diz: “se você não conquistou algo é porque não se esforçou o suficiente”. Trump e Bolsonoaro são mais fortes do que muita gente pensa, eles são capazes de não responder perguntas sérias de jornalistas. Poucos políticos passariam por isso sem consequências mais graves. Portanto, os seus adversários estão diante de uma disputa bastante injusta. 

Renato Noguera

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