“Bom Sucesso: Um sarau cotidiano da vida”
O texto de hoje, inicialmente, seria sobre “Amor de Mãe”, mas como num plot twist típico de uma novela que se preze, mudei a rota e desci no fim da linha de “Bom Sucesso”. Não poderia deixar passar em páginas brancas a avalanche de emoções que a trama me provocara ao longo da sua trajetória, na minha condição de escritor independente, leitor tardio e noveleiro assumido.
O debate sobre maternidade presente na narrativa das 9 virá sequência. Sim, assinarei dois textos seguidos sobre novelas. Sim, sou audiência do produto e não tenho problema nenhum em dizer e, principalmente, escrever sobre isso quando acho que há assunto e relevância. Meus critérios para falar sobre algo são: 1) a qualidade artística da obra; 2) as provocações sócio-culturais que ela faz; 3) a relação afetiva e pessoal que ela cria comigo. E tudo isso sem subjugar gêneros.
A novela criada e escrita pela dupla Paulo Halm e Rosane Svartman trouxe o universo literário muito além de uma simples alegoria narrativa restrita a ambientação da história. A editora Prado Monteiro foi o coração de uma obra que soube transitar com maestria e leveza por todas as alas do nosso cotidiano.
Falar de literatura num país que pouco lê, por si só, já é uma ousadia digna de aplausos. Tirá-la do pedestal que estrategicamente a colocaram ao longo da História e torná-la popular com eficácia e delicadeza é tarefa pra poucos. Fomos agraciados desde o nome das personagens à trechos de obras literárias (dos grandes clássicos à autores da nova geração) numa intertextualidade que flertava sonho e realidade, fábula e as agruras da vida real, e enriqueceu cada capítulo dando ao gênero uma carpintaria mais trabalhada e subjetiva (coisa cada dia mais rara).
Frente e verso da mesma página. Quem cria e quem consome. Quem escreve o que sente para alguém e quem sente aquilo que alguém escreveu. “Bom Sucesso” me fez assistí-la por diferentes lugares. Ao mesmo tempo estive no papel do autor iniciante que vê na tela a dificuldade do mercado literário no Brasil e os, as vezes injustos, critérios de escolha das editoras, e no papel do leitor que me tornei com o tempo, já que na juventude não enxergava prazer na obrigatoriedade da leitura escolar que transforma hábito em tortura.
Além de fazer meu amor pelos livros aumentarem, “Bom Sucesso” me fez quebrar tabus/preconceitos. O primeiro deles foi o de acompanhar na íntegra uma novela das 7 da Globo. Certo que antes disso havia acompanhado “Verão 90”, mais pela nostalgia proporcionada numa fase de tristeza que me encontrava na época (eu precisava rir descompromissadamente). Mas com ela foi diferente. Já nas chamadas senti que a história me prenderia àqueles personagens de uma forma intensa, afetiva, como nunca pensei que aconteceria nas comédias histriônicas e circenses do horário das sete.
O segundo, foi com relação a Grazi Massafera como atriz. Fui crítico dos seus primeiros trabalhos, não pela aposto preconceituoso de “ex-bbb”, mas por achar que ela seria mais uma das tantas participantes de realitys shows que resolvem por um chamamento divino ou num passe de mágica virar atriz. E ela foi contracorrente. Sua excelente atuação como Paloma foi pra mim, e tenho certeza que pra muitos, uma prova de que quando há estudo, dedicação e consciência do ofício é possível ser protagonista de uma novela, brilhar, emocionar e encantar com verdade.
O último, foi encarar a morte sem temê-la, com a dignidade de um comandante de grandeza e contradições como o Seu Alberto. O arco inicial da novela com a troca dos exames dele e Paloma fez a gente se colocar no mesmo lugar por dois contextos completamente diferentes, e justamente por serem tão extremos, se ligaram de forma tão sensível e transformadora. Sempre torci pra que a amizade nascida ali ficasse na amizade mesmo, justamente por quebrar a obviedade que seria eles se apaixonarem e pra mostrar que o amor de amigo entre homem e mulher é possível sim.
A morte que nos ronda desde o primeiro choro é tratada de forma leve e filosófica ainda que seja inevitável sofrer por sua sentença. A condição terminal nos tira do comodismo, da zona de conforto que vez ou outra nos condicionamos a ocupar. Ao vermos as formas e as cores da morte tão perto de maneira tão límpida e iminente passamos a ressignificar coisas, a rever conceitos e a sentir emoções nunca antes permitidas por nós mesmos.
O enredo afinado e o texto crítico afiado com questões atuais como a crise nas grandes editoras, a queima de livros, o descaso com a cultura e a censura que assombra o país, mostrou que entreter e provocar são verbos que podem (e devem) ocupar o mesmo espaço numa mesma novela. Como produto popular de maior alcance na cultura brasileira é cada vez mais importante que elas abram alas para assuntos em pauta no cotidiano político, social e cultural.
Mesmo deixando tramas pelo caminho (a da jovem trans Michelly e de Luan), reforçando alguns estereótipos folhetinescos (o garoto problema “Vicente” que se regenera pela amada geniosa “Gabriela”) e deixando passar a oportunidade de valorizar o talento de muitos atores (casos de Stela Freitas e Romeu Evaristo, e Helena Fernandes e Eduardo Galvão) o saldo da novela é positivo e o sucesso é incontestável, não apenas pelos números de audiência, mas por todas as reflexões que ela conseguiu causar em total sintonia com a conjectura atual do Brasil.
Uma viagem leve, onírica, mas não menos profunda e questionadora. Cada estrofe desse soneto harmonioso entre teledramaturgia e literatura proporcionou momentos inesquecíveis.
A - O reencontro de gerações em tempos diferentes entre Grazi e Antônio Fagundes. Uma troca cênica que transbordou cumplicidade, entrega e ensinamentos preciosos pra quem viu e sentiu.
B - O reluzente talento dos pequenos Valentina Vieira (Sophia) e João Bravo (Peter). Eles encantaram pela naturalidade e desenvoltura em meio a uma roda gigante de emoções.
B - A versatilidade da Fabíula Nascimento num papel cheio de tonalidades que ao longo da história se transformou, amadureceu e terminou outra. Como acontece quando terminamos a leitura de um livro. Nunca somos os mesmos.
A - Babaioff imerso numa composição minimalista e consistente, tendo seu talento reconhecido. Um personagem complexo nas mãos de um ator visceral que nos proporcionou um deleite de ironia, cinismo e referências bem conhecidas.
C - Davi Jr. seguro e eficiente na sua estreia como protagonista num papel que discutiu os lugares da paternidade e enfatizou a importância da representatividade na TV.
D - A grande revelação chamada Bruna Inocêncio. Uma estreante com o brilho e a desenvoltura de uma veterana. Alice conquistou o público com sua timidez e seu desajuste diante do mundo. Acompanhamos o seu crescimento e foi simbólico e inspirador vê-la lançar um livro num país onde as escritoras negras são excluídas dos livros e silenciadas da História.
C - A atuação cativante de Rômulo Estrela. Mesmo no clássico papel do Don Juan ele mostrou sua versatilidade numa composição honesta, mostrando ser muito mais que um mero galã.
Durante sua exibição as vendas das obras citadas nos capítulos aumentaram. Um grande feito que só reforça o poder de um gênero audiovisual que ainda insistem questionar suas qualidades e seu futuro. Mesmo que não leiamos todos os livros citados na novela, a grande moral da história presente na fábula contemporânea de “Bom Sucesso” é que é na literatura, e na arte em suas mais diversas expressões, que está a grande beleza da vida que nos faz viver, resistir e renascer.
Eu sou “A Hora da Estrela” e que cada novela seja um “Admirável Mundo Novo” a ser desvendado.
A V A N T E !
Felipe Ferreira
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