CALA A BOCA E ESCUTA!

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“...eu acho também que as pessoas não podem olhar uma época com os olhos de outra. Você não pode olhar a década de oitenta ou de noventa com a ótica da década de dois mil e vinte. Ai... sabe, olhar para Monteiro Lobato: “ah Monteiro Lobato foi isso foi aquilo”, Monteiro Lobato foi genial, mas ele expressava o pensamento de uma época, ele estava vivendo dentro daquela época. É muito fácil hoje chegar e condenar”.

Pedro Bial

“Eu acho que a gente pode até olhar pra outra época pra gente aprender com os erros, mas eu vejo certas atitudes hoje em dia que eu não consigo entender muito, sabe, por exemplo, (...) no caso eu pintando o rosto não é uma coisa certa porque...? Ai eles começam a aí aí aí, até chegar numa coisa que não é verdade, a gente tava fazendo uma homenagem... ás vezes eu entendo as pessoas falando, eu entendo que se você faz isso você tá abrindo a porta para outras coisas erradas acontecerem. Beleza. Mas você não pode dizer que aquilo é errado, sabe o que eu quero dizer? Eu acho que existe um exagero”.

Xuxa Meneguel

Já reparou o tanto que as pessoas brancas “acham” sobre a questão negra?

Antes eu ficava impressionada, agora eu fico cada vez mais indignada! 

As primeiras aspas acima se referem a fala de Pedro Bial no seu programa, entrevistando a Xuxa. Seu comentário surge a partir de uma cena do especial de fim de ano da globo, onde foi realizada uma apresentação de Grande Otelo vestido de fraque branco e Xuxa vestida de boneca de piche, ou seja, blackface. Aliais, Bial se refere ao black face da Xuxa como “a tal ideia do black face” com se isso não existisse ou não fosse tão importante assim. Pois bem, os dois cantavam uma música que conta a história de um negro, muitíssimo bem arrumado, sufocado em seus colarinhos, que passa por um monte de gente no caminho para ver seu “benzinho”. Quando a encontra, cheio de dengo, esta lhe responde: “Nego tu feio quase num arranco/ cheio de dedos dentro dessas luva/ tem um ditado, diz, nego de branco é sinal de chuva”.

[youtube=://www.youtube.com/watch?v=Y7oAF2vAFCw&w=640&h=480]

Após a apresentação do vídeo, Pedro Bial pergunta a Xuxa o que Grande Otelo achou de ter gravado este esquete com ela, e na sequência, ele mesmo responde (pelo negro morto): “não devia achar nada demais, né? ”Como se Otelo, sim, por não ter questionado ou reclamado – segundo fez parecer – por isso, fosse grandioso. Como se pela sua postura aparentemente mansa diante do fato deixasse claro que essa sim era a atitude mais adequada.

Que medo o racista tem de nossa indignação!

Eles sabem o mal que seus privilégios nos causaram e continuam causando e morrem de medo que devolvamos na mesma moeda. Por isso tentam, o tempo todo, nos convencer a sermos mansos com o argumento da grandeza de espirito. Como se, ao não nos calarmos diante de tamanho desrespeito – para dizer o mínimo – estivéssemos sendo honrosos e não omissos; grandiosos e não submissos. Ofertando a outra face e assim ganhando o reino dos dignos de coração. Falácia! Dignidade é atitude e não silêncio.

Que direito um homem branco, privilegiado de berço, tem para questionar a indignação dos meus?

Diminuir um discurso de tantos irmãos como se este discurso não estivesse à altura de sua grande compreensão de mundo e de humanidade (entendendo humanidade pela ótica grega, que é a que os rege). Nos colocar como raivosos e ignorantes por não deixarmos mais que brinquem com nossa imagem, nossa cultura, nossa fala, conosco e tudo o que nos compõe. Definitivamente o sujeito branco não consegue ouvir um NÃO!!! Pois então lhes digo: NÃO!!! NÃO VAMOS MAIS TOLERAR ESSE TIPO DE “BRINCADEIRA”, DE “LICENÇA POÉTICA”. NUNCA MAIS!!!  Justamente porque somos grandiosos. Porque somos humanos. Porque, a despeito da tentativa de muitos como o aclamado escritor mencionado e defendido pelo entrevistador, o Monteiro Lobato, AINDA ESTAMOS AQUI! E VAMOS CONTINUAR!  

Para justificar a defesa da mencionada esquete – que segundo Bial é “na verdade um número muito bonito” – o apresentador se apoia no argumento do contexto histórico. E não satisfeito traz como exemplo, para comparar e embasar sua afirmação, a questão do racismo apontado na obra de Monteiro Lobato. Ele defende que assim como Lobato, Xuxa não pode ser julgada por suas atitudes por conta do contexto histórico em que estavam inseridos. No entanto, no que diz respeito a Lobato, Bial parece ignorar detalhes como as cartas escritas pelo referido autor para um político amigo seu, Arthur Neiva, em 10 de abril de 1938, onde Lobato diz:

“País de mestiços, onde brancos não tem força para organizar uma Kux- Klan, é um país perdido para altos destinos”

“Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo jogo do galego e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”. 

Não adianta! Por mais que eu leia artigos como o de Aluizio Alves Filho (https://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a82016.pdf) onde ele se esforça – de maneira frágil, ao meu humilde olhar – para desmerecer as acusações de racismo sobre a obra de Lobato, citando trechos estratégicos para provar que na verdade ele era quase um defensor dos fracos e oprimidos, não consigo ver entrelinhas positivas em palavras tão explicitamente negativas. Assim como não consigo ignorar o fato de uma mulher branca estar “pintada” de preto, com uma boca marcadamente vermelha ao lado de um homem negro dizendo que, mesmo que ele esteja bem vestido, debaixo daquelas luvas brancas há uma mão preta que ela não quer que a toque.

No artigo de Aluizio, ele se dá ao trabalho de esmiuçar toda a trajetória de Lobato e seus amigos Arthur Neiva e Renato Kehl registrando inclusive que não eram eugenistas apesar de fazerem parte da Sociedade Eugênica de São Paulo (?). Mas quando vai se referir diretamente às falas de Lobato aqui destacadas se resume a dizer:

“Um dos argumentos mais utilizados na vã tentativa de sustentar a afirmação que Neiva e Lobato se carteavam movidos pelo propósito de trocarem informações a respeito de “[…] um conceito esdrúxulo de eugenia”, é pinçado em passagem de carta que o segundo enviou para o primeiro em 1938.(...) A questão é extremamente complexa e merece análise acurada, pois para bem situá-la há um conjunto de mediações, contextualizações e indagações preliminares que é necessário fazer, o que deixaremos para outra oportunidade, pois aqui não é o espaço propício para enveredar por tal senda, uma vez que extrapola o propósito central do presente texto.”

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Mas na apresentação, o propósito do presente texto não era provar que Lobato não era racista?

Confesso que não consigo compreender: Bial e Xuxa se justificam pelo momento histórico, o outro escreve 53 páginas de pesquisa e sobre o coração da questão diz que vai deixar para discutir numa outra oportunidade!? E nesse jogo de semântica eu fico com a certeza de que nos consideram boçais idiotas, incapazes de perceber suas artimanhas mimadas de manutenção de poder e mando ideológico.

Se Lobato, assim como a Xuxa, estão absolvidos pelo contexto histórico, pela construção de sociedade que os cercava e ditava comportamentos e pensamentos, então também podemos absolver Hitler, pois surgiu num contexto de uma Alemanha desunida, falida, miserável, fora seus dramas pessoais. O povo alemão hoje se envergonha dessa passagem de sua história. E ao invés de se justificar e tentar amenizar a responsabilidade de seu líder sanguinário e sua tropa, se desculpa com o mundo e tenta se redimir, em sua maioria, do seu passado sombrio.

Enquanto aqui, quando uma das personalidades que mais serviram para a imensa redução da autoestima de milhares de meninas negras com seu padrão estético ariano, tem a oportunidade de reconhecer que, apesar do contexto histórico favorecer um comportamento racista, o que foi feito não foi positivo e se fosse hoje faria diferente porque enxerga melhor as coisas, Não! Prefere dizer que estamos exagerando... que NÃO PODEMOS dizer que o que ela fez é errado.

Como não podemos? Se alguém tem propriedade para falar se algo sobre racismo é errado ou não esse alguém é o sujeito negro. Senão será quem? A Xuxa? O Bial? Isso é que NÃO PODE!

Não basta dizer que não é racista, precisa provar isso com ações. Precisa ser antirracista, o que implica abrir mão de privilégios, fazer meia (inteira) culpa, se colocar em julgamento e pedir perdão.

Não em palavras, necessariamente, mas em ações. E não gastar um tempo enorme construindo uma narrativa de entrevista que começa com um livro de Monteiro Lobato em destaque ao fundo do cenário, passando pela heresia de chamar Chacrinha de “O grande ORIXÁ da tv brasileira” para no fim das contas nos chamar de exagerados e, por entrelinhas, de ignorantes. 

É uma audácia que não podemos mais admitir. Triste perceber que, mesmo quando eles tem a oportunidade de reconhecer e mudar o rumo das coisas, preferem manter seu pacto branco narcisistas que não enxerga por opção a baixeza de sua prepotência. 

Parafraseando Carolina Maria de Jesus: 

“Cuidado sabiá para não perder esta gaiola. Porque os gatos quando estão com fome, contempla as aves nas gaiolas. E os (negros) são os gatos. Tem fome!” 

Portanto, cala boca e escuta, branco!

Tati Tiburcio

Instagram @tati_tiburcio