Desejo de matar, masculinismo e outros bichos
O menino João Pedro foi morto numa ação conjunta entre duas polícias: Civil e Federal, em 18 de maio de 2020 no Complexo do Salgueiro, São Gonçalo-RJ. Os agentes de segurança foram reintegrados para funções administrativas em 24 de maio de 2022.
Qual a mensagem que esta decisão informa para a sociedade brasileira?
O que dizer das ações policiais no Jacarezinho em 2021[1] e no Complexo da Penha em 2022 no Rio de Janeiro[2]? Investigações do Ministério Público e relatos de moradores indicam execuções sumárias e alterações das cenas dos crimes.
O que dizer da morte brutal de Genivaldo de Jesus Santos? Em 25 maio de 2022, na cidade de Umbaúba-SE, a Polícia Rodoviária Federal improvisou uma câmara de gás para matá-lo. Fora do Brasil, especificamente nos Estados Unidos da América, além da violência policial que tornou Derek Chauvin um dos criminosos mais conhecidos do mundo por assassinar George Floyd dois anos antes do homicídio de Genivaldo no Brasil, nós temos o crescimento dos massacres, ataques em massa feitos por chamados “lobos solitários”.
É preciso sinalizar que Floyd foi morto em 25 de maio de 2020, uma onda de protestos no EUA e no mundo ganhou um volume incrível e as redes sociais imprimiram, “black lives matter” – vidas negras importam. O que falta para que façamos o mesmo em relação a Genivaldo de Jesus Santos no Brasil? Afinal, foi um homem negro morto por agentes de segurança a serviço do Estado.
De volta aos massacres, de acordo com relatório da Polícia Federal estadunidense, os ataques em massa no país cresceram 52,5% de 2020 para 2021, nesse ano foram 61 massacres com 103 pessoas mortas e 140 feridas[3]. No dia 24 de maio de 2022 no Texas, um atirador de 18 anos matou 19 crianças e duas pessoas adultas numa Escola de Ensino Fundamental[4], 10 dias antes, outro jovem de 18 anos assassinou e gravou em tempo real a morte de 10 pessoas em Buffalo-Nova York. Salvador Ramos, o atirador do Texas foi morto pela Polícia. Payton Gendron, responsável pelas mortes em Nova York foi preso.
Do ponto de vista legal, esses casos não podem ser enquadrados nos mesmos dispositivos jurídicos. Existem muitas diferenças. Porém, quero trazer um elemento próximo. Todos os agentes são homens. Existe uma categoria analítica que é pouco comentada, os estudos de gênero tratam do masculinismo ou masculismo.
O psicólogo Sérgio Gomes Silva analisa uma crise de masculinidade que se tornou mais densa a partir da década de 1960 com fortalecimento e expansão dos movimentos sociais de mulheres. Na cultura ocidental existem modelos normativos de gênero. Sérgio Silva[5] argumenta que “ser homem” foi circunscrito nas polaridades negativa e positiva.
De um lado, não poder chorar, não ser fraco, não demonstrar suas emoções, não ser covarde, não ser passivo nas relações sexuais, dentre outros mandamentos da masculinidade. Por outro, ser provedor, destemido, determinado, autoconfiante, independente, agressivo.
O binarismo masculino e feminino produz uma ideologia de naturezas distintas baseadas no aparato biológico. A testosterona (C19H28O2), um hormônio que no corpo dos homens é 20 a 30 vezes maior que no das mulheres ganha um status político.
Não é raro que entre homens masculinistas encontremos afirmações como: “– A gente tem muita testosterona, somos homens”, como se isso implicasse em determinadas atribuições de domínio e comportamentos bélicos.
O masculinismo difere do machismo. Ora, nós, homens, estamos condicionados pelo machismo estrutural, mas não precisamos ser masculinistas. Homens masculinistas entendem que o feminismo foi longe demais[6].
O masculinismo está enredado por uma obsessão pela virilidade. Ela se torna marcador-chave da masculinidade aparece em diversos símbolos, incluindo nas sungas de super-heróis que ficam por cima de colãs justos. Ou ainda, na irritação que faz com que alguns heróis destruam tudo ao seu redor para alcançar um objetivo.
Uma simbologia que não é rara está em mostrar o dedo médio como forma de agressão, deixando polegar, indicador, anelar e dedo mínimo recolhidos. O dedo médio em riste simboliza o pênis, entendido como uma arma.
Ora, não é um bom sinal organizar elementos da sexualidade por metáforas de guerra. O último recurso do masculinismo é matar. O desejo de matar é a maneira de recorrer à solução final para frustrações. É preciso eliminar o que incomoda, é preciso destruir o inimigo.
Um homem deve ser capaz de fazer algo sem titubeios e a solução final está num ato definitivo de guerra que pode significar puxar o gatilho. Achille Mbembe é enfático: “[...] o patriarcado mantém uma relação constitutiva com a economia da ejaculação”[7].
O falo – enquanto categoria psicanalítica de suturar nossas faltas – é simbolizado como o pênis. Ora, a “economia da ejaculação” engloba tanto uma ânsia por fazer do pênis um instrumento de tortura tal como em determinadas cenas do imaginário pornográfico quanto descarregar todas as tensões bélicas de disputa.
A definição de bem-estar do Imperador Gengis Khan[8] é um exemplo dessa relação entre patriarcado, tortura, estupro e assassinato, “A felicidade consiste em vencer os inimigos, em vê-los de joelhos à nossa frente, em tirar-lhes as suas propriedades, em saborear o seu desespero, em ultrajar as suas mulheres e filhas”.
O prazer está na dor do outro, um homem masculinista só goza na angústia de quem humilha, tripudiando de outras pessoas um “homem de verdade” encontra a sua glória. A vontade incessante de dominar e controlar o máximo de coisas possíveis encontra solo fértil nas estruturas capitalistas, o desejo de matar é um dos seus efeitos.
O masculinismo é uma resposta às objeções que o feminismo endereçou ao patriarcado. O racismo e todas as formas de opressão se articulam com esse modo operacional de dominação que passa pelo assassinato sistemático dos inimigos, pelo controle e dominação de tudo que for possível.
Diversas filósofas alertam através de formulações ecofeministas[9] que o modus operandi patriarcal se aplica ao meio ambiente, tratando a natureza como se fosse coisa[10]. Gengis Khan, Alexandre da Macedônia, assim como todos os agentes de projetos de invasão e colonização, inspiram os policiais envolvidos nesses crimes e os lobos solitários que praticam ataques em massa. Esses homens só admiram a força bruta.
É urgente enfrentarmos o patriarcado. A filósofa burquinense Sobonfu Somé, assim como a antropóloga guarani Sandra Benites, a psicóloga também guarani Geni Nuñez, a filósofa estadunidense bell hooks e a socióloga e sacerdotisa brasileira Mãe Flávia Pinto já apontaram inúmeros caminhos para esse enfrentamento. A escritora Sônia Rosa no livro para crianças e gente adulta chamado O menino Nito, nos brinda com uma aventura de um menino que é obrigado a guardar o choro e perde todas suas forças por isso.
Mas, como enfrentar tudo isso? Talvez, o primeiro passo seja é desarticular, ser-homem da demonstração insistente de força e assertividade agressiva. É preciso que ser-homem não seja mais uma fantasia de virilidade incessante e exercício de poder. Os meninos precisam reaprender a chorar para que esse choro contido não se transforme em desejo de matar.
Renato Noguera
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[1] www.youtube.com/watch?v=b801EssOE-I, www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/investigacao-de-massacre-no-jacarezinho-rj-chega-quase-ao-fim-com-24-das-28-mortes-arquivadas.shtml e
[2] g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/25/operacao-na-penha-dia-seguinte-mortos.ghtml
[3] https://www.poder360.com.br/brasil/fbi-registrou-recorde-em-ataques-a-tiro-nos-eua-em-2021/
[4] Atirador mata 19 crianças e 2 adultos em escola dos EUA e é morto - BBC News Brasil
[5] SILVA, Sérgio Gomes. 2006. “A crise da masculinidade: Uma crítica à identidade de gênero e à literatura masculinista”. Psicologia Ciência e Profissão. Vol.26, nº 1, p.118-131.
[6] Militantes do 'masculinismo' dizem que é hora de defender direitos dos homens – reportagem de Tom de Castella, BBC New Magazine em: www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/05/120503_militantes_direitos_homens_mv
[7] MBEMBE, Achille. Brutalismo. Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo: Nº 1 edições, 2021, p. 131.
[8] www.youtube.com/watch?v=bxihT9zMHDs
[9] Na coletânea Ecofeminismos: fundamentos teóricos e práxis interseccionais (2019), organizada por Daniela Rosendo, Fábio A. G. Oliveira, Príscila Carvalho e Tânia A. Kuhnen e o Guia ecofeminista: mulheres, direito, ecologia, de Vanessa Lemgruber (2020).
[10] www.youtube.com/watch?v=2F-QzNHzbVQ
[1] www.youtube.com/watch?v=b801EssOE-I, www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/investigacao-de-massacre-no-jacarezinho-rj-chega-quase-ao-fim-com-24-das-28-mortes-arquivadas.shtml e
[2] g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/25/operacao-na-penha-dia-seguinte-mortos.ghtml
[3] https://www.poder360.com.br/brasil/fbi-registrou-recorde-em-ataques-a-tiro-nos-eua-em-2021/
[4] Atirador mata 19 crianças e 2 adultos em escola dos EUA e é morto - BBC News Brasil