Em tempos de crise: qual é a lição de Nelson Mandela?

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Aqui não farei uma breve biografia de Nelson Mandela, elencando seus feitos. Tampouco, tratarei de crise. Não se trata de tratá-lo como herói, tampouco colocá-lo como uma chave para solucionar os problemas do mundo. O objetivo é debater o princípio filosófico de Madiba (apelido que faz referência ao clã Thembu e a um líder histórico da comunidade).  O título não passa de um convite para enfrentar uma pergunta:

O QUE É A ÉTICA UBUNTU?

Não é raro atribuírem ao termo “ubuntu” um sentido genérico de congraçamento, abraços, concordâncias e ausência de conflitos. Algo como, “todo mundo se ama”, “os conflitos não existem”. Não é nada disso. A palavra “ubuntu” existe em quatro línguas africanas do tronco bantu, ndebele, swati, xhosa e zulu. Nós encontramos termos semelhantes, tais como botho do povo sesotho, numunhu em shangaan; vhuthu em venda; bunhu em tsonga; umntu in xhosa; utu in swahili. Mas, também encontramos em línguas do tronco kwa, tal como no idioma yorubá em que temos a palavra ajobi. A expressão mais popular que traduz o princípio ético ubuntu seria: “eu sou porque nós somos”. Em primeiro lugar, essa tradução é ruim porque opõe “eu” e “nós”. Ubuntu entendido como perspectiva de diferença opondo à comunidade ao indivíduo não passa de uma fantasia ocidental. 

Antes de tudo, não devemos romantizar a ética ubuntu. Não se trata de uma panacéia mágica, uma receita encantada que aplicada transforma corações e mentes.

UBUNTU É O RECONHECIMENTO DE QUE O CONFLITO É INERENTE À VIDA. VIVER É ESTAR EM CONFLITO.

Ora, se não estamos a tratar de um bálsamo mágico e miraculoso que resolve todos os problemas, propondo abraços fraternos de rivais e uma vida comunitária sem crítica. O que é a ética ubuntu? O que ela pode nos ensinar em tempos confusos em que os desentendemos são presenciais e virtuais?

O filósofo sul-africano Mogobe Ramose explica bem o sentido da filosofia ubuntu. Ramose argumenta que ubuntu é uma perspectiva que se propõe a resolução dos conflitos, estabelecendo princípios de convivência e uma orientação crítica para as ações. Ubuntu não tem regras fixas ou receitas pré-moldadas. Nós estamos diante de uma filosofia que tem três aspectos fundamentais:

1º) O conhecimento do mundo;

2º) A natureza da vida;

3º) Como agir diante dos desafios públicos e privados.

Em outras palavras filosoficamente rebuscadas: as dimensões epistemológica, ontológica e ético-política.  No aspecto epistemológico (como conhecemos o mundo), a filosofia ubuntu sugere a polirracionalidade. Ou seja, existem modelos diversos de racionalidade. Não podemos trabalhar com um modelo único de razão. Do ponto de vista ontológico (a natureza da vida), o “ser” é pluriversal; não se trata mais de pensarmos através da ideia de universalidade. Mas, reconhecer que existem vários universos, o mundo é plural. Existem muitas narrativas e sentidos de mundo.

NO ASPECTO ÉTICO-POLÍTICO A PALAVRA É INTERDEPENDÊNCIA.

Nós sempre estamos numa relação com outras pessoas, com outros animais, com vegetais, com o meio ambiente em que vivemos.  

Conforme Ramose, a ideia de ubuntu aparece expressa no provérbio zulu: “umuntu ngumuntu ngabantu”. Expressão que pode ser traduzida como “uma pessoa é uma pessoa através, por intermédio, de outras pessoas”. Em outros termos, ubuntu se refere a humanização; mas, ao contrário do que dizem as frases fáceis e de efeito que circulam nas redes sociais, ubuntu não é a recusa ao conflito.

Porém, o reconhecimento de que o conflito não é motivo para exterminar os adversários; mas, uma maneira fundamental de produção de autoconhecimento e capacidade de interação cooperativa. Dito de outro modo, não se trata de gostar de tudo e de todos. Mas, de aprender a conviver, respeitar e criar maneiras de interação que reforçam a necessidade mútua que temos uns dos outros. Sem confundir isso com estarmos sempre concordando com os outros e vivendo num sonho simbiótico sem divergências e diferenças.

Na dimensão política, Nelson Mandela (1918-2013), líder político sul-africano, prêmio Nobel da Paz em 1993 que ficou 27 anos preso por um dos regimes oficiais de segregação racial mais cruel do século XX, presidiu a África do Sul de 1994 a 1999. Mandela convocou o seu  partido político, o Congresso Nacional Africano, a usar os princípios ubuntu e, ao invés de referendar a expulsão sumária de euro-descendentes que tinham privilégios raciais por serem brancos, propôs medidas constitucionais em que essa população deveria reparar seus crimes racistas.

Afinal, o sistema de apartheid (segregação racial) da África do Sul foi um dos mais rígidos do século XX. Porém, as tecnologias políticas ubuntu não visam promover a exclusão de pessoas, mesmo diante de medidas imorais, antiéticas e contra todos os princípios de direitos humanos que foram cometidas pelo governo branco e racista da África do Sul; Mandela  fez a proposta da reconciliação. Ora, engana-se quem acredite que isso significaria sorrir e esquecer tudo que aconteceu. O Arcebispo Desmon Tutu (1931), Prêmio Nobel da Paz em 1984, pode ter sido mal entendido quando falava em perdão. Essa palavra não dá conta do fenômeno ubuntu, Tutu não estava a dizer que ubuntu é sinônimo de perdão. Mas, que a efetiva compreensão de que podemos superar as divergências e vivermos juntos em seguida. Ou seja, “perdoar” pode ter o sentido de “esquecer” o mal que alguém nos faz, incluindo afastar-se dessa pessoa.

Ubuntu não tem nada a ver com afastar-se de alguém. Mas, tem o sentido de nos aproximarmos, compreendendo que somos interdependentes e sabendo que não precisamos estar plenamente de acordo com tudo. A pessoa que comete uma injustiça precisa repará-la. Portanto, reconciliar não significa esquecer, apagar algo da memória. Porém, resignificar os acontecimentos mediante o esforço das pessoas que ferem em reparar o que fizerem. Ubuntu não pode ser confundido com pedidos de desculpas.

Mandela ensinou que a reconciliação só é possível como uma etapa paralela ao processo de reparação dos crimes e injustiças cometidos pelos opressores. Portanto, ao invés de pena de morte e expulsão da população branca, após intensos embates dentro do seu próprio Partido político, Mandela procurou estabelecer medidas para que a população branca pagasse mais impostos e fosse incluída em medidas políticas que diminuíssem seus privilégios historicamente construídos pela opressão racista. 

Ubuntu pode ser entendido como sinônimo de “humanidade” com um sentido específico, a saber: nós devemos  participar do processo de humanização das outras pessoas. O que não significa deixar de divergir e disputar responsavelmente encaminhamentos de convivência, propostas que nunca podem deixar de ser alvo de críticas e melhorias.  Nós sempre discordamos, o dissenso é natural. Mas, o grande desafio é que devemos usar nossa humanidade para vivermos juntos sem precisar eliminar as pessoas que pensam diferente da gente. O maior desafio é reconhecer que a única maneira de vivermos sem medo é aceitarmos que somos diferentes e precisamos assumir nossas discordâncias para criarmos um mundo para todas as pessoas. Não é equívoco afirmar que: as tecnologias éticas e políticas ubuntu podem contribuir para entendermos e enfrentarmos, ainda que parcialmente, a crise que afeta a vida do povo brasileiro.

Renato Noguera

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