Eu não sou tua tia Identidades sonegadas

Imagem : Twitter

Dois kg de arroz tipo 1, um kg de feijão branco, um vinagre de maçã, seis pãezinhos tipo francês, um pote de geleia de uva, quatro garrafas de água e duas maçãs verdes.

Um homem de 30 a 40 anos, de boa aparência, com mais de 5 anos de experiência, que resida no centro; mulheres bonitas de 18 a 40 anos, não feministas; mulher, sem filhos, de 25 a 35 anos; homem casado, religioso, sem vícios, de 35 a 45 anos.

 Parece estranho? Causa repulsa a comparação?

Em ambos os casos, trata-se de mercados: de produtos, no primeiro; de trabalho, no segundo.

No primeiro caso, pode-se escolher de acordo com o nosso poder aquisitivo e as características do produto que se quer. No segundo, no mercado de trabalho, também. Por que a comparação feita dessa forma, chama a mesma atenção que falta quando falamos, ouvimos, lemos, escrevemos, enfim, convivemos com a expressão “mercado de trabalho” cotidianamente?

Em face do conteúdo dos anúncios das vagas de emprego/trabalho por meio dos quais é definido um determinado tipo de trabalhador ou trabalhadora, basta uma reflexão que não precisa ser profunda para que a conclusão seja a de que esses mesmos trabalhadores e trabalhadoras são as “mercadorias” à disposição no “mercado de trabalho”.

Assim não fosse, a busca seria por alguma pessoa para executar serviços/trabalhos, os quais independem do gênero, cor, idade, local de resistência, origem, número de filhos dos trabalhadores e trabalhadoras ou outras condições e/ou características; mas, de sua capacidade de realizar o trabalho anunciado.

Mas, se apesar de tudo, ainda quisermos nós fazermos de desentendidos, ao menos não caiamos na justificativa mais rápida e menos difícil de dizer que o mercado é do trabalho e não de trabalhadores; pois, trabalho também não é mercadoria, como todos os países minimamente civilizados já reconheceram, há décadas.

Estamos acostumados e não nos sentimos, sequer incomodados com isso. Como também nos acostumamos com outras situações. Exigimos nossa condição de consumidores e ostentamos nossa posição de parte de um contrato de consumo ao questionarmos uma entrega fora do prazo, um gasto que não fizemos no cartão de crédito ou um voo atrasado ou cancelado. Viva o Código do Consumidor!

Contrato de trabalho: empregado e empregador. Também um contrato. As partes desse contrato são o empregador e o empregado. Mas pode chamar de trabalhador.

Mas não os chamemos de colaboradores. Colaborar importa em ajudar, em auxiliar e um contrato de trabalho prevê direitos e deveres para as duas partes. O empregado mantém seus direitos quando assina um contrato de trabalho. Tem, ou deveria ter, suas obrigações como empregado explicitadas em um contrato de trabalho. Nem um dever a mais. O empregador tem as suas obrigações explicitadas na legislação. Nem um dever a menos. Acabem com a legislação trabalhista!

Tampouco chamemos os trabalhadores de “família”. Uma empresa não é uma família. Na família, quem exerce o poder, estabelece as regras que entende as melhores para os “seus”, muitas vezes corrige com castigos, grita, escolhe seus preferidos e “manda e desmanda”. A menos, claro, que todos os trabalhadores estejam entre os herdeiros da empresa.

Mas não os chamamos só de colaboradores e membros de nossa família. Quando o trabalhador não usa o mesmo uniforme dos empregados da empresa, não faz as refeições com eles, não tem os mesmos horários de trabalho, sequer os mesmos chefes possuem; e, de vez em quando, nem sãos os mesmos todos os dias, os chamamos de “terceirizados”.

O termo “terceirizados”, tem ao menos a vantagem, se isso é possível, de não esconder a pretensa benevolência que está por trás das expressões “colaboradores” e “família”.

Nesse caso, a realidade é tratada como ela é. Estas pessoas não são realmente vistas como pessoas, mas como “algo” que vem de outra empresa e forma um grupo homogêneo, chamado indefinidamente de “terceirizados”. Vamos fazer a festa de final de ano: os terceirizados participam? Quem é aquela senhora ali? É uma terceirizada.

Assim, os trabalhadores que não têm direito à socialização com os colegas de trabalho, pois não ficam muito tempo convivendo com as mesmas pessoas, nem nos mesmos locais de trabalho; não sabendo, muitas vezes, em qual local vão trabalhar no próximo dia, não são empregados, não são trabalhadores, sequer são colaboradores, ou da família. São terceirizados.

E como podemos nos referir a esses trabalhadores? Assim, por exemplo: trabalhadores. Se for realmente indispensável uma distinção: trabalhadores de uma empresa terceirizada.

Entre esses trabalhadores, há, ainda, um grupo que merece um tratamento especial de todos. Trata-se de uma categoria formada essencialmente por mulheres. E por mulheres pobres e não muito jovens.

São as mulheres que servem cafezinho. Em locais de trabalho, em lojas, em cabeleireiros, em inúmeros lugares, essas trabalhadoras estão servindo café e sendo chamadas de tia.

As tias do cafezinho.

Poderíamos pensar que esse tratamento é devido a um carinho especial que é devotado por todos à essas trabalhadoras.

Contudo, se pensarmos que ninguém chama seus chefes ou seus superiores hierárquicos, por mais especiais que sejam, de tias ou tios, não estaria mais do que na hora de sabermos os nomes destas trabalhadoras, como sabemos de nossos colegas de trabalho; e, inclusive, de nossas reais tias?

 

Márcia Medeiros de Farias

Outono de 2021

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