Gente branca como eu

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Esse texto é ao mesmo tempo silêncio e grito.

É silêncio porque não é minha vez de falar, porque gente branca como eu já falou demais. É grito porque eu não aguento mais. Eu não aguento mais assistir, de novo, que um homem branco como eu assassinou um homem negro, o George, alegando que estava cumprindo seu dever. Eu não aguento mais ver que uma mulher branca como eu foi responsável pela morte de um menino negro, o Miguel. Eu não aguento mais operação policial em favela, organizada por gente branca como eu dentro de gabinete, pra matar gente negra, e que matou o João Pedro e a Ágatha.

Não dá mais pra gente continuar assim e achar que está tudo bem.

Isso nunca esteve certo. E já passou a hora de gente branca como eu perceber. Talvez tenha demorado pra mim também. Porque quando a gente, que é branco, nasce e cresce, não precisa se preocupar com isso. Todas as portas estão abertas e ninguém está nos seguindo. Todo mundo deixa claro que nós somos bem-vindos em qualquer lugar. Em qualquer lugar. É só entrar e tomar um café. E às vezes a gente nem olha pra quem fez o café, que eu poderia apostar que não foi uma pessoa branca.

A polícia não mata a gente que é branco, mas pede desculpas pelo incômodo se cruzar nosso caminho; é verdade. A gente vive num mundo em que o tempo do branco vale mais que uma vida negra. E então, quem é branco acha que isso é legítimo. Por isso que foi tão fácil praquela mulher branca se livrar do Miguel pra fazer as unhas. Ela achava que o tempo dela era mais importante. Que não tinha problema. Que é tudo assim mesmo. Que não é com ela. Que ela não é racista. Aparecem um monte de justificativas nessas horas.

Eu não aguento mais gente branca como eu dando desculpas para continuar fazendo tudo igual e seguir não se importando.

Eu não me conformo como gente branca como eu pode deixar isso passar. Não é só mais um caso. É mais uma vida perdida. É mais um filho que morreu, mais um sonho que foi embora, mais uma família destroçada. É mais uma mãe, negra, que está sendo impedida de continuar a ser mãe e de poder ver o filho crescer. É mais um sorriso que se fechou, é mais uma esperança que se perdeu. Um menino que já está fazendo falta. Não dá mais.

A gente, que é branco, precisa se importar mais. Precisa se esforçar pra não deixar tudo como está. Eu sei, é muito fácil esquecer disso quando tudo está ao nosso favor ou sempre nos tratam bem e sorriem para nós. Mas o seu prato limpo pode ter custado a vida de alguém. Ele vai estar sempre sujo de sangue enquanto das coisas continuarem assim, não se esqueça disso.

Porque esse privilégio é fruto dessa estrutura social racista, que fere, mata e destrói a vida de quem é negro.

Por isso que a gente não pode esquecer do Miguel, da Agatha, do João Pedro, do George. Tem que doer na gente. Toda vez que eu não me importei com isso, eu também fui responsável, assim como você é. Tem que doer em mim, tem que doer em você. Porque não dá mais pra continuar assim. Olha pra foto do Miguel no jornal. Olha pro sorriso dele. Olha pra Ágatha vestida de mulher maravilha. Olha pro João Pedro com os amigos. Tem que doer aí saber que eles não estão mais conosco, que eles foram assassinados. Porque eles importam, e muito. E alguém vai sofrer sem eles pra sempre, vai sentir essa dor o tempo todo. Tem que doer até ficar difícil de respirar, como ficou para o George. Ele foi assassinado, mas você ainda tá aqui pra fazer diferente, pra não deixar que isso continue. Mas você precisa se importar, então faça esse esforço e olhe para eles. Você precisa se esforçar, porque eles lutaram todos os dias pra existir. E tem muitos outros lutando, enquanto você não faz nada. Mas eles importam, e muito.

E agora eu me coloco em silêncio, por eles. 

Arthur Spada

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