O fim do Trumpismo?

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Enquanto eu escrevo essa coluna, a longa contagem de votos das eleições norte-americanas ainda não chegou ao fim, mas tudo indica que a vitória será do democrata Joe Biden, contra Donald Trump. Mas isso está longe de significar que esse processo terminará agora. 

Na noite de quinta feita, Trump reiterou as alegações de que há fraude na votação, questionando principalmente nos votos feitos pelos correios – e que tendem a beneficiar o candidato democrata – mesmo que não tenha qualquer prova disso. Esse comportamento demonstrado agora, não difere daquele adotado ao longo da campanha, com relação a não aceitar um resultado que lhe fosse desfavorável. Trump acusa o adversário de roubar as eleições por meio de “votos ilegais”, sem explicar quais seriam esses, e afirma que se fossem considerados apenas os votos “legítimos” já teria vencido as eleições. Além disso, afirma que questionará judicialmente o resultado, caso Biden vença.  

Como discuti brevemente no meu texto anterior, Trump emerge num contexto em que se discute a crise da democracia representativa e como figuras que se colocam fora do jogo político e adotam um discurso conservador que dialoga com as aflições das massas têm se destacado e levado aos limites as instituições democráticas, colocando todo o sistema em perigo. Trump insiste nesse comportamento e os próximos dias podem ser fundamentais para o futuro desse modelo de organização política: a negativa de deixar o poder ou a reversão judicial do resultado pode reverberar no mundo todo em função da influência que os Estados Unidos exercem. Uma clara erosão desse sistema por lá, significaria que as grandes potências mundiais da atualidade, EUA, China e Rússia não encontram no voto a legitimidade de seus governos, deixando de lado o conceito clássico de que “todo poder emana do povo”. 

Muitos autores da ciência política têm recuperado o argumento de Gramsci quanto ao interregno, um momento histórico no qual aquilo que existe já atingiu o seu limite e começa a definhar, mas a novidade ainda não tem condições de surgir. No caso do sistema democrático, esse não mais produz os bons resultados que alcançou no pós-guerra e a perspectiva de recuperação parece impossível, mas nenhum consenso viável se apresenta no horizonte para substituir esse modelo. Durante esse período de interregno, muitos “sintomas mórbidos” surgem. Nós estaríamos precisamente nesse momento. 

Uma pesquisa perguntou para entrevistados se achavam que seus filhos teriam uma vida pior que a sua. 60% nos Estados Unidos e 64% na Europa responderam afirmativamente. A perspectiva de futuro que as pessoas tinham, de que sua vida seria melhor que a de seus pais parece ter acabado. Isso se dá porque o modelo de Estado de bem-estar social não está mais funcionando. Até o final da década de 70, o trabalho tendia a ser mais estável e os aumentos de salário acompanham o crescimento da produtividade. Os trabalhadores eram organizados em sindicatos protegidos pelo Estado e tinham o monopólio do mercado de trabalho. O governo, por meio de uma tributação moderada, seguia uma lógica que incentivava o investimento e o consumo e assim as classes conviviam pacificamente. 

Com a política neoliberal dos anos 80, protagonizada por Thatcher no Reino Unido e Reagan nos EUA, esse equilíbrio se rompe. O capital livre que circula leva a estagnação dos salários das massas de trabalhadores, e a compensação passa a se dar em função de a globalização permitir que o custo de vida permanecesse relativamente baixo. Com a crise econômica de 2008, esse novo equilíbrio entra em colapso. No âmbito político, os trabalhadores não se vêm mais representados pelos partidos tradicionais que antes confiavam e os sindicatos também perdem legitimidade na representação destes. Isso se torna extremamente acentuado com as novas formas de trabalho que dificultam a identificação do operário como tal e a interação social com os outros, que permite a organização política – pensemos na uberização do trabalho. Agora, aqueles que foram deixados para traz nessa lógica, tendem a se alinhar a valores conservadores, em busca de um passado que não será mais recuperado. 

Para o cientista político Adam Pzeworski, no entanto, isso não significaria que o sistema democrático como um todo entrará em colapso, ao adotar uma perspectiva minimalista de democracia, esta identificada pela existência de eleições livres e alternância de poder. Seria preciso mais que isso, já que a convivência com crises, seja do capitalismo ou da própria democracia, seriam frequentes e não teriam impedido a recuperação e manutenção do sistema. Mas isso não significa ignorar que a subversão do regime democrático pode se dar por dentro, ao serem adotadas regras que impedem que a vontade dos eleitores seja respeitada, ou que as instituições representativas percam espaço, ao pondo de não ser mais possível fazer prevalecer o desejo popular manifestado pelo voto.

É por isso que essas eleições americanas são tão importantes de serem acompanhadas, principalmente os seus desdobramentos que certamente não terminarão quando for declarado um vencedor. Mesmo que Trump deixe a Casa Branca, os limites foram testados e empurrados e o seu discurso não desaparecerá. Grande parte do povo ainda segue – por motivos legítimos - não se sentido representado, podendo aderir a discursos disruptivos e perigosos. Assim, resta saber se o sistema será capaz de sobreviver a um segundo Donald Trump. 

Arthur Spada

Instagram @arthurspada