O ocidente, o mal-estar da cultura e o amor sob suspeita

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O que estou entendendo aqui por ocidente é uma perspectiva filosófica, um complexo cultural, político-econômico, social e psíquico. Uma maneira de organizar a vida e criar suas possibilidades de sentido.

De modo bastante resumido, ocidente está atualmente configurado como uma sociedade capitalista, racista, patriarcal, cisheteronormativa, capacitista, religiosamente monoteísta, baseada na ideologia da tribo eleita.

“A minha hipótese é de que no mundo ocidental, o amor está sempre sob suspeita. “

“As pessoas não são socializadas para experimentar o amor em toda sua intensidade.”

“O amor parece estar inscrito numa lógica perigosa do discurso monoteísta do capital.”

O que quer dizer que as normas do mercado são tomadas como leis divinas e, no contexto do dogma do deus-capital, ser “empreendedor de si mesmo”[2] é um caminho quase sem volta para autoinstrumentalização e transformação dos outros em ferramentas. Em outras palavras, o amor tem funcionado como mais uma mercadoria entre outras, enquanto as pessoas se transformam em coisas na vitrine.[1]

De acordo com Thommas Hobbes, os seres humanos não têm prazer em desfrutar da companhia dos outro, porque nos falta capacidade inata para viver em sociedade.

“Nós somos agressivos e violentos, porque nossos desejos entram em conflito com o das outras pessoas.”

Em Mal-estar da civilização, Sigmund Freud argumenta que o nosso desejo é ilimitado, enquanto a possibilidade de satisfação, não. Portanto, a sociedade precisa frear os nossos impulsos, o que leva, inevitavelmente, à produção de neuroses.

Wilhem Reich discorda tanto da tese hobbesiana de que o ser humano é o lobo do próprio ser humano, quanto da ideia freudiana de que a satisfação do desejo está em permanente choque com as exigências da cultura.

Pelo contrário, ele concebe que somente distorções sociais nos afastam da nossa capacidade natural de satisfação afetiva. Neste sentido, Reich fica mais próximo de Orunmilá, Davi Kopenawa, Nego Bispo, Ailton Krenak e Sobonfu Somé do que de Freud. Sem romantizar ou idealizar culturas não-ocidentais, não é raro encontrar estudos africanos, indígenas e afro-brasileiros que celebram a possibilidade de bem estar na cultura.

“Minha hipótese é de que o amor está permanentemente sob suspeita no mundo ocidental, com raras exceções. Existe um falso comando que confirma o seu inverso.'“

Na interpretação hegemônica do cristianismo, devemos amar ao próximo da mesma forma que amamos a nós mesmos. Pois bem, Frantz Fanon tem uma série de argumentos bastante consistentes que contribuem para a seguinte conjectura:

“O colonialismo é uma máquina de produção de ódio.”

A ideia de falta que assola a cultura ocidental serve como chave de leitura. Seja por conta da dívida ontológica que o ser humano tem com Deus: o pecado, ou, em termos psicanalíticos, porque a pulsão é insaciável, o nosso desejo é um buraco sem fundo, ou, ainda, porque a lógica da economia capitalista faz dos Estados-nações, das corporações e das pessoas seres continuamente endividados – tanto por conta das dívidas públicas, que sempre crescem, quanto por conta da exigência ininterrupta de capital de giro empresarial como de gestão de despesas pessoais e familiares, que nunca terminam.

“O pecado original dos monoteísmos herdados de Abraão está traduzido e encarnado na dívida econômica impagável.”

Numa mistura entre capitalismo e cristianismo, temos a reedição da tribo eleita como o conjunto de pessoas que vencem. Ora, viver em constante competição para ser “eleito” digno do amor é uma boa receita para não incorporar o amor em toda sua intensidade, seja competir consigo para ter o “corpo perfeito”, ganhar a medalha de “sucesso profissional invejável” ou encontrar a “fórmula da juventude”.

O desejo insaciável e o frenesi incansável de buscar mais uma “dose” são bases da dependência afetiva. O ocidente tem uma lição que vem na mamadeira:

“Nunca esteja satisfeito”. Uma pessoa que nunca se satisfaz se transforma em alguém que não sabe amar.

Todas as formas de opressão são maneiras de impedir o exercício de nossa capacidade de amar. Mas, não são apenas as pessoas oprimidas que não conseguem amar, quem oprime também. A filósofa bell hooks argumenta que o patriarcado, além de oprimir as mulheres, impede que os homens se conectem com as suas emoções, com a profundidade e a intensidade necessárias para cultivarem a condição humana em toda sua extensão. Do mesmo modo, Fanon afirma que o racismo, além de ser destrutivo para as pessoas negras, impacta negativamente gente branca.

Elas também usam máscaras. Por essas razões, afirmar: “Ama ao próximo como a ti mesmo”, no ocidente, tem um grave problema. Num contexto social marcado por opressões e disputas, o    mal-estar da cultura ensina que ao invés de amar ao próximo, uma pessoa só saberá odiar.

“Afinal ela não se ama, porque desconfia de si mesma. Sem confiar em si, como confiar no outro?  Improvável, daí, o amor fica sob suspeita.”

Frantz Fanon e bell hooks ajudam a desfazer o ideal de que as pessoas brancas não estão tomadas pelo ódio.

“O homem branco não é objeto de opressão, mas, submerso na branquitude e no patriarcado não passa de um poço de ódio.”

A meu ver, a máscara branca descrita por Fanon é uma fantasia que impede a instalação do amor. Não devemos nos enganar, as pessoas privilegiadas (gente branca rica e de classe média) também estão mascaradas. Elas têm pouquíssimo contato com a própria humanidade.  Essa mensagem cristã é inviável num mundo cisheteronormativo, estruturado pelo patriarcado, pelo racismo, capacitista e sustentado pelo princípio:

“Compre, descarte e compre de novo”.

canal ciências criminais

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Nesse contexto, o amor está desencarnado. O amor se torna um horizonte distante, constantemente sob suspeita no banco dos réus e tratado como um bandido de crimes hediondos. Sem fiança, o amor fica encarcerado e fora do alcance.

 Renato Noguera

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 [1] Doutor em Filosofia, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ensaísta, roteirista e dramaturgo. 

[2] MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradição Sebastião Nascimento.  N- 1 edições, 2018, p. 16.