PATERNIDADES: "Ausências Invisíveis”

O abandono paterno habita duas facetas intermitentes. A primeira revelada de forma súbita não dá tempo para qualquer contato ou vínculo afetivo com a criança seja na barriga da mãe, seja logo após seu nascer. A segunda parece ser a mais insensível - ainda que qualquer medição de perda e dano caia na armadilha leviana da subjetividade - e se deflagra tardiamente após o convívio, a criação do laço emocional na infância, na adolescência, na vida adulta. 

Segundo dados colhidos pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 2015, o Brasil ganhou mais de 1 milhão de famílias compostas por mãe solo, em um período de dez anos. São números alarmantes de uma cultura familiar onde é preciso transitar pelos elementos socioculturais que compõem essa paternidade negligente para melhor entendê-la, e sobretudo, transformá-la.

Esse Brasil de milhares de pessoas sem o nome do pai no registro de nascimento é o sintoma social de uma conjuntura familiar moldada pelo machismo corrosivo imposto as mulheres por anos, em contradição a um tratamento benevolente a irresponsabilidade paterna.        

Negar a condição de pai tem forte impacto na formação da criança e na vida da mãe. A omissão naturalizada deixa a mulher frente a frente a uma maternidade solitária, sem romantismo, sem idealizações. O dilema de ter ou não o bebê traz a tiracolo fatores de ordem econômica, racial e religiosa, e expõe as adversidades de um momento importante que toda mulher espera dividir, compartilhar. 

O aborto, uma das principais consequências provocadas pelo abandono paterno, é uma questão de saúde pública (assim deveria ser tratada) e da liberdade exercida pela mulher sob seu próprio corpo. O impacto causado pela notícia de uma mãe que abandona sua cria recém-nascida na porta de um orfanato, de um hospital ou na frente da casa de algum desconhecido não é o mesmo choque que se tem ao ver um homem abandonar sua companheira grávida ou um pai abandonar um filho sem sequer conhecê-lo. 

A cultura do machismo conduz a padronizada cartilha de ser pai. É pela lógica da masculinidade tóxica de uma homem supervalorizado e inquestionável que a função paterna é construída em ações isoladas, na falta de diálogo, na carência de uma participação ativamente mais afetiva. Mais do que se fazer presente é necessário estar presente em todos os momentos e se permitir aprender juntos.       

A paternidade clama por SOCORRO. E esse pedido de ajuda de pais, de filhos, muitas vezes é amordaçado dentro de cada um. Ler a biografia do Belchior foi a chama dessa fogueira anti-maniqueísta capaz de transformar orgulho em semente, dor em adubo. “Belchior - Apenas uma Rapaz Latino Americano” me apresentou a mística persona do gênio recluso, e me fez caminhar pelas fendas mais desérticas da minha própria natureza. Agora, regando diariamente a flor, convidei Jotabê Medeiros, o anfitrião dessa trip, para falar um pouco sobre o encontro entre literatura e realidade, as paternidades ao redor e de como Belchior transcende por tudo isso.               

A ausência invisível de Belchior pelo olhar do Jotabê Medeiros.  

I- A contracapa do livro nomeia Belchior, entre tantas expressões, como “um pai de família”, “um desaparecido”. Esses dois adjetivos colidem dentro da complexidade do homem e do artista. Na vivência literária você enxergou a ausência paterna dele para com os 4 filhos e suas respectivas mães como sintoma patriarcal do abandono paterno similar ao de inúmeros pais de família do Brasil ou como o comportamento alucinado de uma alma cuja a liberdade só lhe permitiu escutar sua própria voz, seu próprio desejo? Contar as diferentes facetas da trajetória do Belchior te fez repensar em algum momento seu papel de pai? 

Tentei não fazer um julgamento moral de Belchior, mas também não passar pano para os fatos. É difícil, porque o artista é sempre também um homem comum, seus atos e suas responsabilidades não pairam em uma região de inimputabilidade acima do resto da humanidade. Ao mesmo tempo, eu não tenho um diagnóstico definitivo do que o empurrou para o autoexílio - há indícios de uma alienação mental, algo que poderia ter sido confirmado por um médico se fosse dada essa chance ao destino. Não posso me arvorar juiz da existência alheia. Eu tenho contra mim, como pai, minha própria carga existencial - sou filho de um homem muito duro e ríspido, e luto para entendê-lo e não repetir com meus filhos o que presenciei e vivi como filho. É algo muito diferente da história de Belchior. 

II- Costumo dizer que um livro biográfico pode percorrer dois caminhos: o “chapa branca” e o sinuoso em possibilidades. Ao biografar Belchior você dialogou com a mansidão vulcânica do protagonista anti-herói e optou pelo segundo caminho. Foi criado algum distanciamento entre você e o biografado? Abordar essa fuga paternal no livro revela o verniz que esse episódio da vida dele recebeu por sua condição de homem, branco e artista?           

Eu vivi os anos 1970 já como adolescente, e também os anos 1980, e sei que a moralidade de nosso tempo mudou muito de lá para cá. O comportamento dos homens mudou um pouco, e mesmo a forma como a sociedade compreende as coisas também. Belchior era um homem do seu tempo, portanto tinha alguns dos vícios próprios do seu tempo; para compreendê-lo, é preciso ter em mente que o foco central tinha que ser na forma como conduzia suas reflexões, suas angústias e sua capacidade criativa e materializava isso em música; e também qual foi a extensão de sua arte, a forma como ela transcendeu a circunstância histórica, social, estética e comportamental.

III- Você é o décimo primeiro de quinze filhos. Na letra de “Como Nossos Pais”, composição icônica do Belchior imortalizada na voz de Elis Regina, um dos trechos diz… “ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais”. A paternidade ainda é vivida como na época dos nossos pais e avôs? Como é sua convivência cotidiana com a paternidade e como essa repetição de hábitos naturalizados numa esfera masculina de machismo e preconceitos durante anos pode ser discutida e recontada?    

Acabo de escrever um livro sobre meu pai. É a minha tentativa de compreender essa transmissão de dons e maldições dos pais aos filhos. Esse livro deverá ser publicado em 2020. Acredito que a relação entre pais e filhos é muito diversa, e presencio no dia a dia esforços tocantes para superar os abismos de entendimento. Há, entretanto, um nó que é comum a diversas gerações: os pais da classe média brasileira insistem em preservar os filhos daquilo que há de conflituoso no mundo, e teimam em querer mantê-los em bolhas, em situações idealizadas. Criam escolas que são verdadeiros bunkers contra as influências do mundo exterior. Creio que vivemos num país em convulsão, não é justo que nossos filhos só venham a saber sobre isso quando adultos, após serem liberados da tutela dos pais. Isso não vai ajudá-los. Não vai nos ajudar.

Felipe Ferreira

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