Pela hora da morte

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Numa recente ida a São Paulo para acompanhar a temporada de Stonewall 50, peça que segue em cartaz no Teatro dos Satyros, fiz uma das coisas que mais amo fazer na vida. Escolher o próximo livro. Como tenho muitos livros ainda não lidos em casa, fico um bom tempo namorando a estante até eleger a próxima companhia. Sempre repito que: quem gosta de ler nunca se sente sozinho... 

Escolhi o último lançamento da Tag, uma excelente iniciativa que envia mensalmente um livro surpresa para sua casa, escolhido através de curadorias interessantíssimas. E, assim, mal vi passar a viagem, mergulhado nas páginas iniciais da história de um grupo de jovens descobrindo os mistérios da vida em uma escola britânica dos anos 50, escrito por Julian Barnes.

Cheguei em Sampa sem nenhuma programação noturna, além da vontade de mergulhar no livro que já havia me seduzido irremediavelmente. 

Ao chegar na casa da amiga que iria me hospedar, recebo o baque de sua tristeza. Ela havia passado o dia se despedindo de uma amiga que ainda não tinha completado os 40 anos. Uma morte súbita, inesperada. Natural que o tema de nossa conversa tenha sido: a morte. E nessa hora, sempre passamos pelos lugares comuns para tentar compreender o que já sabemos. Entre eles, a frase que ouço de minha mãe desde criança : “a única coisa certa na vida é a morte...”

E, mesmo assim, raramente estamos preparados para sua chegada. 

Não vou nem falar sobre a nossa própria morte. A tranquila compreensão de que vamos morrer depende de um grau de espiritualidade difícil de alcançar. Ou, quem sabe, ao contrário, de um materialismo tão consistente que também nos tranquilize de alguma forma. Afinal, sabemos que todas as coisas são passageiras. Inclusive nós mesmos.

Mas gostaria de falar aqui sobre essa morte inesperada de uma pessoa jovem.

A própria palavra “inesperada” já traduz que, mesmo sabendo de sua inexorabilidade, nunca a estamos esperando. Ao menos de que se trate de alguém muito idoso ou muito doente. E, até nesses casos, muitas vezes, nos pegamos lamentando a finitude, a decrepitude ou a incapacidade de vencer certas doenças.

Quando pensamos no que essa pessoa que se foi ainda poderia  viver, no que estava construindo, nas relações que mantinha diariamente ou nas últimas palavras que trocamos com ela, caímos naquele lugar da incompreensão, da revolta, ou da tristeza profunda.

E acabamos por nos perguntar: o que cabe a nós que ainda estamos por aqui, que não fizemos a passagem, que ainda não nos tornamos o ponto final da nossa própria história? E, sobretudo, o que essa morte “inesperada” veio nos ensinar?

Nos tempos que correm, somos tragados por contas a pagar, dificuldades diárias de viver em cidades desordenadas, longos trajetos a percorrer para chegar no trabalho (quando há trabalho), abdução pelas redes sociais, discussões políticas muitas vezes permeadas pela intolerância, entre tantas outras coisas que nos demandam energia e nos afastam do nosso próprio caminho.

Afinal, é preciso se perguntar: por que estamos aqui? O que realmente importa? Qual a realização que estamos propondo para esta existência? 

O consumismo que se entranhou em nosso cotidiano nos faz, por exemplo, seguir comprando garrafas plásticas de água como se não soubéssemos que o planeta está sendo sufocado por tanto plástico. Ou produzindo lixo em uma escala insuportável para a terra e os mares darem conta. Enfim, não faltam exemplos de como passamos a viver distantes da natureza, e a esgotá-la, como se não fizéssemos parte dela. Esse comportamento também nos distancia do olhar para as plantas e para os animais que, sem religião ou filosofia, lidam com a morte naturalmente.

Como é milagroso presenciar a recuperação quase instantânea de uma planta seca ao receber uma dose boa de água. Ou acompanhar a decisão de alguns animais de se afastar dos seus, quando percebe a chegada da hora de partir. 

Enfim, não tenho a pretensão de responder às questões que fiz sobre nossa existência e finitude. Apenas entendi a necessidade de refazer essas perguntas. De desacelerar o consumismo que acaba por consumir nossas próprias potencialidades. E buscar alguma forma de reaproximação da natureza, suas belezas e seus ensinamentos constantes.

Na hora de dormir, para mudar de assunto, fui ávido mostrar o livro para minha amiga e retomar o prazer da leitura, quando percebi que...  havia esquecido o livro no avião. E também não lembrava o título do livro.

Frustrado pela ausência do companheiro literário, entrei na internet para recuperar o título do livro e tentar encontrá-lo nos achados e perdidos da companhia aérea. E lá estava ele. Um simples título que demonstrava que quando é preciso olhar com coragem para uma questão, tudo a sua volta conspira para isso. O livro se chamava: “O sentido de um fim”. 

Renato Farias

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