Repúdio a fala do presidente e o peso do passado
Ainda que eu corra o risco de me tornar repetitivo, já que o tema do autoritarismo e os perigos da democracia tem se tornado frequentes por aqui, não consigo me furtar do compromisso de manifestar meu repúdio às declarações dadas pelo presidente (este, sempre em letra minúscula e não por conta do novo acordo ortográfico) quanto ao assassinato, pelas mãos da ditadura, do pai do agora presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz.
Seu pai, Fernando Santa Cruz, então funcionário público e estudante, foi morto enquanto estava em custódia do Estado. O seu atestado de óbito, emitido apenas neste ano pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, deixa claro que o óbito decorreu “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”.
Merece ser repudiada a declaração dada pelo chefe do executivo, em primeiro lugar, porque sua pretensão era a de simplesmente atacar a OAB enquanto instituição, a qual por mais críticas que mereça, existe para a proteção do Estado Democrático, dos direitos humanos, bem como da supremacia da Constituição. Aliás, a OAB, inegavelmente, exerceu importante papel para a derrocada do regime militar e o retorno da democracia.
Ao atacar a instituição, o presidente ataca todos os profissionais a ela filiados, inclusive a mim, ao tentar diminuir a importância da advocacia, que na defesa dos direitos dos cidadãos cumpre com seu papel social, inclusive, e sobretudo, quando esta demanda o confronto com o Estado, para que cumpra suas finalidades. Confronto este, que faz parte da minha vida diária no meu ramo de atuação e, se o posso fazer com destemor e bravura, é porque reconheço ainda viver numa sociedade livre e pautada pelo direito, o que certamente incomoda a esse presidente.
Mas o que é mais grave, é o desrespeito a memória dos mortos, especialmente daqueles que morreram assassinados pelas mãos do estado autoritário e a predileção por esse tipo de regime. A ironia de sua fala, que exalta não só a morte, mas o período mais obscuro da recente história brasileira, revela o seu descompromisso com aquilo que assumiu ao tomar posse no dia 1º de janeiro, ao jurar obediência à Constituição.
Nossa Constituição é resultado de um processo de ampla abertura e participação social, que buscava a afirmação da liberdade e da democracia após os 21 anos chumbo. Durante o processo de sua elaboração, estima-se que mais de 9 milhões de pessoas tenham passado pela Assembleia Nacional Constituinte, durante o ano de 1.987. Houveram 182 audiências públicas, 11.989 propostas e 6.417 emendas e anteprojetos foram encaminhados. Nossa constituição é, portanto, um marco na participação social e reflete os anseios da época em deixar para trás um governo autoritário, que nos privou de toda forma de liberdade e transformou o Brasil num lugar sombrio, sob o império da autoridade a margem da lei.
É difícil acreditar que o presidente tenha levado a sério o juramento feito no dia da posse e não o tratado apenas como mais um protocolo necessário para assumir o cargo, especialmente por contrariar tudo aquilo que ele passou anos dizendo e fazendo. Infelizmente, não há nada de novo sob o sol, já que todos os sinais de seu comportamento autoritário sempre estiveram presentes. Mas não deixa de ser chocante, quando isso é proferido no exercício da chefia do Poder executivo, de modo que merece total repúdio.
Por outro lado, aumenta o temor de que o compromisso assumido por ele ao se empossar do cargo, bem como aqueles firmados na Constituição de 1988 serão completamente desprezados, e mergulharemos novamente num período regido pelo abuso e arbitrariedade. Se nem o respeito à memória familiar ele demonstra, lhe parece pouco caro a preservação das instituições.
Nem se pode dizer que a sua afinidade com o Exército justifique esse comportamento. Aliás, é lamentável para a instituição ter pessoas que busquem negar o inegável e não demonstrem o compromisso com a nova ordem democrática, sejam enquanto membros vinculados ao exército ou não, mas que falem em seu nome. Assumir e aprender com o passado é uma virtude e um exercício de cidadania. Há um bom exemplo a esse respeito.
Em 1970, o Chanceler Alemão Willy Brandt (cargo hoje ocupado por Angela Merkel) viajou para a Polônia, em busca de ser estabelecido um acordo recíproco de não agressão, bem como para que fossem reconhecidas as fronteiras fixadas ao final da Segunda Guerra Mundial. Era a primeira vez que o chefe do governo da Alemanha se dirigia àquele país, que foi fortemente atacado e ocupado pelo regime nazista de Hitler. Em sua capital, Varsóvia, foi criado pelos alemães o maior gueto de judeus do período, muitos dos quais foram posteriormente enviados e mortos em campos de concentração. Até o ano de 1970, não havia existido nenhum gesto contundente de reconciliação entre os dois países.
Ao visitar o Memorial dos Heróis do Gueto de Varsóvia, Brandt – que combateu o regime de Hitler a partir da resistência no estrangeiro, e, portanto, nunca ingressou as fileiras nazistas – depositou uma coroa de flores, e, além de baixar a cabeça, se ajoelhou em completo silêncio, o qual se estendeu para todos os presentes. Esse momento, de extrema humildade e respeito, entrou para a história mundial. "Ele, que lutara toda a vida contra Hitler, aceitou carregar nos ombros o peso – não a culpa – do passado” disse o cientista político Alfred Grosser, conforme publicou o jornal Deutsche Welle sobre esse fato.
Respeitar, aprender com, e, acima de tudo, assumir os erros do passado, é sinal de engrandecimento. Por outro lado, insistir em negar nossas falhas ou evitar o confronto com elas, apenas revela as fraquezas e a fragilidade do nosso caráter enquanto sociedade. Tenho para mim que nosso presidente é incapaz de aprender com o exemplo de Willy Brandt, mas este revela que é possível existirem estadistas que assumam os equívocos históricos, reconheçam as nossas tragédias e se comprometam com a busca de um mundo melhor.
Esse exemplo também nos lembra que não devemos nos contentar com governantes que flertem com o autoritarismo e a tirania. Estes, devem ser sempre repudiados e confrontados, ao se colocarem contra os compromissos mais básicos de civilidade.
Arthur Spada
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