Sagrado Tempo Rei
Sempre que finalizo um texto, um livro, uma peça e me bate aquele desespero cortante de não ter mais sobre o que escrever sou surpreendido por uma avalanche de novas ideias, por encontros com novos personagens ouriçados para se apresentarem a mim e ao mundo.
E cada vez que isso acontece me convenço de que tem algo de antropofágico, de intrínseco, de auto existencial na arte da escrita.
Quanto mais se lê, melhor se escreve. É uma constatação que costumamos ouvir desde cedo. Ao consumirmos textos verbais, não verbais, subtextos, o texto nas suas mais infinitas formas, somos atravessados pela chama que tanto tememos um dia não encontrar dentro de nós.
Quando terminei meu primeiro romance, “Desmembro”, me perguntei: E agora? No próximo escreverei sobre o quê? Aí logo veio Alice e calou-me. “Cali-ce”, meu novo livro, será lançado nos próximos meses. É sobre um falar que vai além da língua, atravessa o oceano e marca gerações.
Ao fim da viagem, mais uma vez, veio a tão temida pergunta e o medo de não ter mais história pra contar. Eis que recebo mais uma resposta do universo e o novo “era uma vez” vem de uma provocação involuntária da autora Lícia Manzo.
Sim, foi assistindo “Um Lugar Ao Sol” que minha próxima história a ser contada ganhou luz. Sim, será uma história sobre gêmeos na perspectiva subjetiva e pessoal de quem é filho único sobre duas personas antagônicas do reflexo borrado da imagem e semelhança.
A síndrome da escassez criativa me acomete também ao término de todo texto que escrevo aqui nesse espaço. E quando eu não tenho ideia do que escrever leio, assisto, escuto, vaguei no ócio.
“... me dei conta conta de algo que eu, como todo mundo, sempre soube sem saber. Eu também não vou ler todos os livros que quero: nem sequer todos os livros que há na minha casa eu terei tempo de vida para ler”.
Na semana passada, em meio a aridez criativa, li o texto da Natália Timerman, autora do ótimo “Copo Vazio” (leiam!), na coletânea de ensaios “Depois do Fim”, recém lançada pela Editora Instante, tive o estímulo que eu precisava para escrever esse texto que vos leem.
O tempo escapa das nossas mãos, passa esgueirando do nosso lado, não temos o controle nem o poder de vislumbrar o quanto nos resta dele. Certa feita soltei no twitter uma provocação. Diante a situação de não gostar de uma série, um filme ou um livro você continua até o fim para não cair na perda de tempo ou larga de mão, para de assistir/ler no meio do caminho sem culpa, sem remorso para não perder tempo com algo que não está te dando prazer?
Há um tempo, eu fazia questão de ir até o fim. Eu comecei, eu termino! Questão de honra. Capricho compulsório de quem não deixa nada pela metade. Hoje, passado alguns anos, eu paro e me despeço sem pensar duas vezes, sem crise de consciência. Entramos no streaming (que são muitos) e é uma overdose de séries, filmes, documentários, programas de todos os gêneros e formatos.
O cardápio é infinito (e questionável) para todos os gostos, todas as tribos, todos os públicos, que muitas vezes perdemos mais tempo escolhendo o que assistir do que de fato concentrados e envolvidos com o que escolher dar play.
É como uma releitura da espera pelo transporte público. A espera é mais cansativa e demorada que o trajeto em si.
Cada hora:
- um livro novo do nosso escritor, da nossa escritora favorita é lançado;
- descobrimos por “acaso” uma grande revelação da literatura que escreve sobre um tema que amamos ler;
- a nova temporada da série que somos fã é lançada (o tempo passou tão rápido que a gente já tinha até esquecido que teria novos episódios);
- o lançamento relâmpago do novo álbum de tal artista é o assunto mais comentado das redes sociais.
É muita coisa pra consumir e muito pouco tempo livre para apreciar. Um descompasso que se acentua ainda mais num tempo que ninguém sabe até quando durará.
Claro que tudo depende do tempo-momento. Às vezes não estamos no espírito, na energia necessária para ler determinada obra. Já aconteceu comigo e afirmo sem titubear que já deve ter acontecido com você também. Começo, paro, volto depois e engreno numa experiência deliciosa que tinha seu momento para acontecer.
É o tempo da coisa em nós e não o nosso tempo na coisa. Mas quando acontece e pode acontecer e tá tudo bem do não gostar sobrepor aos fatores internos e externos e prevalecer, não tem volta, não obrigação. Paro ali e parto pra outra.
O tempo é tão precioso que priorizo os livros que quero ler e que me dão prazer em folhear cada página, em sentir cada palavra, em imaginar cada personagem. Não vou cair no clichê capitalista de que “tempo é dinheiro”. Não que dinheiro seja algo ruim, nocivo e condenável. É que o tempo é um solo tão sagrado e abstrato que equipará-lo a um mero coeficiente monetário é condená-lo ao abismo da dependência materialista do ter. Um pecado capital!
O tempo é rei!
O tempo é mistério!
O tempo não para!
E, como postei uma vez no meu instagram, meu medo não é não dar certo. Meu medo é não dar tempo de contar e de ler todas as histórias.
Felipe Ferreira
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