“Segunda Chamada” e a vozes da educação.

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Em tempos de ignorância institucionalizada onde a figura histórica de Paulo Freire é questionada, avacalhada e desvalorizada por uma minoria desgovernada e ignóbil, é sempre bom ver a educação e tudo aquilo que ela suscita e provoca , pautando o conteúdo de obras audiovisuais.

Aliar entretenimento e bom conteúdo é uma lição que pode (e deve) ser praticada em larga escala por quem produz arte nesse país que insiste em pular as páginas principais da sua história. Não à toa, a arte educação é um conceito prático de ensino que potencializa o que esses dois pilares cruciais no alicerce de uma nação tem a oferecer dentro e fora dos muros da escola.

 A gente cresce ouvindo pais e mestres, e até nós mesmos damos nosso pitaco, se:

O professor faz o aluno ou o aluno faz o professor?

(opressor poli o aluno e censura conteúdo?)

[infelizmente, tem muitos desses por aí também]

 Essa é uma das questões que sempre balizaram as discussões em torno do ensino. De quem é a responsabilidade por sua qualidade e resultado? De um lado, o professor que precisa ter paciência, uma boa didática, e, sobretudo, amor pelo ofício, mas é mal remunerado, pouco valorizado pela sociedade e ainda tem que lidar diariamente com o sucateamento da parte mais guilhotinada dos orçamentos públicos.

Um essencial que é refletido no espelho da gestão pública como supérfluo. Do outro, o aluno que nem sempre apenas estuda, muitas vezes concilia trabalho e a atividade escolar, e convive com problemas familiares das mais diversas ordens entre faltas e abandono. 

 As adversidades para quem estuda e para quem ensina ganham ainda mais contornos quando a escola é pública e quando o aluno/a aluna são da periferia e de baixa renda. Esses fatores sociais e econômicos que vêm de fora e adentram os muros das escolas por todo o país se refletem no elevado número de evasão escolar.

Alunos e alunas que se veem obrigados a abandonar os estudos para priorizar o trabalho. A educação sucumbe à necessidade de sobreviver. Quando isso não acontece, estudar deixa de ser prioridade e passa a ser uma atividade cansativa e tortuosa após uma rotina exaustiva de trabalho.

O EJA (Educação de Jovens e Adultos) é a única janela para quem, apesar da luta diária para garantir o pão, segue firme na esperança de ter um futuro melhor (para si próprio ou para os seus).       

O descaso com a educação pública por parte dos governantes e o desprezo por parte de nós, sociedade civil que dá as escolas públicas a pecha imutável da má qualidade de ensino e de uma deformação social sem solução, faz com que o ensino público seja um algoz tratado a margem de um projeto de nação real que democratize oportunidades.

Essa urticária elitista com a educação gratuita se restringe apenas às escolas.  Nunca entendi a contradição que envolve a escola pública e a universidade pública. Maldizem e fogem da escola pública no ensino básico, fundamental e médio, mas todos almejam ingressar numa universidade estadual, federal, na balbúrdia que é referência de qualidade, de pesquisa e formação crítica dos seus alunos.

Elenco

Ao assistir a segunda temporada de “SEGUNDA CHAMADA” me reencontrei com o professor medíocre que fui um dia e me lembrei de alguns mestres esquecíveis que passaram pela minha trajetória escolar e acadêmica. Uma franca minoria se comparada aos professores que passam por nossa vida e plantam a semente da educação que brota e enraiza para além dos muros da escola, da sala de aula, do diploma.

Os que ensinam (na via de mão dupla que é a arte de educar e se permitir aprender) passam e ficam. Os que apenas explicam ficam soterrados em meio às agridoces e infindáveis memórias colegiais, e sequer vale a lembrança.

Educar é muito mais do que seguir um rígido planejamento de carga horária, conteúdo programático. O desempenho de um aluno não se avalia apenas pela a aplicação contínua de provas, testes, simulados, questões abertas e fechadas. As diversas questões que compõem o aprendizado em sala de aula não se simplificam e se definem por uma avaliação numérica que determina “quem aprendeu”, “quem não aprendeu”, “quem está apto” e “quem não está apto”.

A série criada por Carla Faour, Julia Spadaccini e Jô Bilac e escrita com a colaboração de colaboração de Maíra Motta, Giovana Moraes e Victor Atherino faz um panorama humano e sensível do ensino público no país, e sobretudo, das pessoas que preenchem as salas de aulas com suas histórias, seus dramas e de traumas que muitas vezes se refletem e se convergem com o de quem está na cadeira ao lado ou em pé diante de todos.

A construção precisa e catártica do roteiro (principalmente nos 6 episódios que compõem a dilacerante segunda temporada) ganhou uma carga ainda maior de humanidade e reflexão social do coletivo e nos tensionamentos que confrontam o “eu” e o “outro”. O sentimento cruza o caminho das ruas e de mundos nem tão distantes assim como se mostram ser, fazendo com que alunos e professores não apenas se vejam, mas se enxerguem, se escutem, se fortaleçam nas vulnerabilidade que os individualizam e na emoção que os unem. Na Escola Estadual Maria Carolina Maria de Jesus as lições vão além da sala de aula.  A diversidade que insistimos em não ver e o outro que negamos existir nos atravessam com a delicadeza bruta de um mundo hostil que não aprendemos a encarar na maioria das escolas sejam elas públicas ou privadas.  

 E para dar vida a uma galeria de personagens complexos, retratos de um Brasil tão diverso e desigual, um elenco talentoso carimba em cada atuação um repertório genuíno e autoral que nos pega pela mão e nos faz sentir.

É maravilhoso ver atores experientes, com anos de serviços prestados à arte, como Moacyr Franco (numa interpretação artesã e emocional a cada lapso, a cada expressão, a cada silêncio) e Paulo Gorgulho (ótimo como o diretor da escola que tenta manter a racionalidade e um distanciamento emocional dos dramas dos alunos).

Quem disse que não há bons personagens mais velhos? É só ter alguém que escreva e alguém que escale. Porque atrizes e atores para interpretar, com certeza, não faltam.

 A série ainda nos brinda com o talento de:

 Débora Bloch no papel de Lúcia, que na primeira temporada teve que lidar com um drama pessoal envolvendo o filho dentro da escola em que trabalha, agora num conflito coletivo que ratifica toda sua preocupação com a escola, com os alunos e com as pessoas em situação de rua privadas de estudar. Sua parceria com Ângelo Antônio é ótima e a forma com a relação de afeto e confiança entre eles se constrói faz emocionar.

Thalita Carauta, uma das grandes surpresas do elenco. Não pelo talento, que ela já havia mostrado nos papéis cômicos que fizera, mas por mostrar um outro lado do seu repertório cênico. Um bom personagem cômico não precisa ser engraçado o tempo todo. O humor pode estar num olhar, num cacoete, numa entonação bem dada no momento certo. Sua Eliete prova isso e mostra que ela é dona de uma força dramática arrebatadora.

Silvio Guindane e Hermila Guedes formam uma dobradinha excelente que vai ganhando nossa torcida ao longo dos episódios. A relação de Marco André e Sônia se inicia ainda na primeira temporada e chega na segunda mais consistente e convicta da vontade que move seus personagens e da coragem que eles agarram para enfrentar o seu trauma familiar que decidem encarar juntos. (Os dois últimos episódios da 2ª temporada são um grito de dor e fúria que ecoa por nossas entranhas).   

A série é uma ode à educação, um chamado para a sua importância e precisa urgentemente ser exibida na TV aberta. A janela do Globoplay é pouco para o imenso alcance  que sua qualidade e relevância merecem. 

Nota: Dedico esse texto aos anti-mestres que conheci durante o meu período escolar (sim, esses maus professores até quando desencorajam e menosprezam seus alunos, como aconteceu comigo com um professor de matemática, no fundo, eles nos fazem ter consciência do que não queremos ser como eles no futuro), mas sobretudo, aos professores maravilhosos que tive o prazer de ser aluno, que me fizeram acreditar no estudo como o melhor caminho e a acreditar em mim como melhor instrumento para transformar a minha bolha, o meu entorno e o meu dentro.

Felipe Ferreira

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