Simulador afetivo, amor e frustração

Blog Bianch

Blog Bianch

O “amor romântico” tem relação com um processo histórico e cultural longo, remete ao trovadorismo, aos romances de cavalaria e acaba se transformando num modelo padrão dos relacionamentos amorosos no século XX.

A partir dos estudos de Irving Singer[1], nós resumimos o amor romântico como uma forma de crença de que completar a pessoa amada é uma maneira profunda de satisfação pessoal e, portanto, de evitar a frustração. Ora, numa sociedade em que somos mais sujeitos neuroeconômicos[2] do que seres afetivos, isto é, pessoas.

Qual a diferença entre a condição de sujeito (conceito chave da modernidade ocidental) e o de pessoal – inspirado pela filosofia ubuntu?

O sujeito pressupõe a existência do objeto, o conhecimento e as relações passam por algum grau de objetificação do que desejamos. Enquanto, o conceito de “pessoas” pressupõe que as relações são encontros afetivos, existem seres e não, objetos.   De acordo com Achille Mbembe, esse sujeito inscrito na neuroeconomia neoliberal implica em dois comportamentos: reconhecer os desejos mais básicos e se qualificar como mercadoria.

Enquanto ser pessoa tem relação com aquilo que Ailton Krenak[3] e Sobonfu Somé[4] afirmam ser: Reconhecer que nascemos com uma canção singular que revela algo intransferível e único acerca de nós mesmos.

De modo muito geral, em várias culturas africanas e dos povos originários da América, toda pessoa nasce com uma canção, uma música que revela o seu propósito e ajuda a dar sentidos para sua vida. Essa canção deve ser tocada frequentemente, seja em momentos de alegria ou de tristeza.

Se fizermos algo que ajuda outras pessoas, a nossa canção deve ser lembrada. Se fizermos algo que prejudica outras pessoas, a nossa canção também deve estar em nossa memória, a sua recordação e o seu cantar nos ajuda a encontrar o nosso eixo, a nos lembrar de onde viemos, quem somos e a nossa jornada. Numa sociedade em que nascemos incapazes de cantar e dançar a nossa própria canção e na qual todas as coisas têm valor de mercado, a tolerância à frustração parece diminuir a cada geração.

Vale advertir que tolerar a frustração não é um convite à infelicidade, tampouco não empenhar-se na jornada do bem-estar.

Em termos afroperspectivistas, a arte de amar é a capacidade de reconhecer que todo relacionamento é um exercício de reconhecimento de limites – dos nossos, das outras pessoas, do mundo. A falta de limite leva às intoxicações afetivas, provocando explosões e implosões.

De modo geral, sem fronteiras afetivas, uma pessoa mistura as suas emoções com os sentimentos de outras pessoas. Pois bem, quando não sabemos distinguir afetos, nós somos capazes de transformar amor em ódio em frações de segundos.

Nessas horas a mão que acariciava pode virar a mão que executa. Os estudos de geopsicologia apontam que pessoas com baixa tolerância à frustração assim como aquelas que não reclamam de nada são mais propensas às explosões e implosões afetivas – machucar outras pessoas e a si mesmas.

O bem-estar não deve ser interpretado como ausência de frustração, não é o caso viver sob anestesia afetiva, sorrindo sem perceber a hora do choro. Não se trata de ser forte e manter-se firme apanhando da vida sem verter uma lágrima quando  o mundo desaba.Tampouco, é o caso de se desfazer em choro o tempo todo, reclamando noite e dia das dores.

Amar é a arte de assumir nossas frustrações como limites dos nossos encontros conosco e com os outros. O que é indispensável para estabelecer as nossas fronteiras afetivas. Mas, como reconhecê-las? É possível algum tipo de treinamento afetivo para identificar o que sentimos?

Quero trazer uma história que pode nos ajudar nessa reflexão, me recordo de um parente, primo direto da minha mãe, com idade próxima à dela e que se formou na Academia da Força Área (AFA) como piloto na década de 1970. No início dos anos 1980, meu primo foi para a Aviação Civil.

Nessa época, além de ele ser um dos poucos pilotos negros do país numa grande companhia comercial, os simuladores de voo[5]também não eram tão abundantes como hoje (mesmo no Brasil contemporâneo, pilotos negros na aviação civil e militar continuam sendo minoria).

Hoje os modelos de simuladores de voo aumentaram e ficou mais “fácil” passar pelo treinamento pra obter o brevê, documento que autoriza a pilotar aviões. O que quero que pensem é que os simuladores servem para que futuros profissionais de voo aprendam a lidar com intempéries, desenvolvendo habilidades que evitem acidentes e aumentem a destreza da arte de pilotar.

Pois bem, será que é possível pensar um brevê afetivo?O que seria um simulador afetivo? Um programa feito para conhecer de forma dinâmica e tranquila os tráfegos afetivos, aprendendo a operar recursos variados para evitar incidentes e acidentes amorosos. Isso é possível?

Sem dúvida, a resposta parece óbvia e inalterável: não, não existem simuladores afetivos. Ainda que não seja possível passar por  um simulador afetivo, sempre que uma pessoa for apta a escutar a sua própria canção, ela será capaz de encontrar sentido para vida diante de qualquer frustração.

Existe algo que faz sentir “direito”?  Não existe sentir “certo” ou “errado”. O que nos ensina o griot Toumani Kouyaté[6]:

“Nunca desconfie dos seus sentimentos”.

Vale relembrar, se a frustração é inerente à vida, evitá-la não passa de um devaneio.O que os costumes de diversas culturas africanas e dos povos originários nos ajudam a pensar e sentir?

Lembrar da nossa canção, cantá-la, dançá-la é a maneira mais próxima de frequentar um

“Simulador afetivo”.

Porque, inevitavelmente, a nossa canção fala de amor – o afeto que sabe habitar tanto campos desertos como terras imersas em tempestades.

 Renato Noguera

Instagram @noguera_oficial

Siga no instagram @coletivo_indra

Referências

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra.Tradução Sebastião Nascimento.  N- 1 edições, 2018.

SINGER, Irving. The nature of love. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.

Filmografia

Título: Entre nós, um segredo

Documentário / Documentário / 2021 / Brasil, México, Burquina Fasso

Direção: Beatriz Seigner e Toumani Kouyaté

Lançamento: 29 de abril de 2021

 


[1] SINGER, Irving. The nature of love. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.

[2]MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra.Tradição Sebastião Nascimento.  N- 1 edições, 2018, p.

[3] Ailton Krenak nasceu em 1953, liderança dos povos originários, filósofo, defensor da autonomia dos territórios indígenas, autor de obras como  A vida não é útil e Ideias para adiar o fim do mundo. Krenak é um ativista socioambiental e foi eleito intelectual do ano em 2021.

[4] Sobonfu Somé nasceu em Burquina Fasso, faleceu em 2017, pensadora que articulava os campos da filosofia e psicologia a partir da cosmovisão étnica Dagara, autora de Espírito da intimidade.

[5]https://www2.fab.mil.br/musal/index.php/projeto-av-hist/62-projeto-av-hist/470-os-primordios-dos-simuladores-de-voo

 

[6] Toumani Kouyaté nasceu em Burquina Fasso e faz parte de uma linhagem tradicional de djélis  - tradição profissional que no Ocidente é recoberto pelo termo griot – que remetendo ao conselheiro real de Sundjata Keita, Balla Fassekè Kouyaté. Toumani Kouyaté é ator e cantor, no ano de 2014, recebeu de Bougadari Kouyaté o bastão para se tornar oficialmente o djéli do presidente do Mali. No documentário, Entre nós, um segredo(2021), o griot afirma que nunca devemos desconfiar do que sentimos.