Sociedade dá Cansaço. Trabalho dá Dignidade.

Que ironia começar um texto que se propõe a refletir sobre trabalho falando da tão condenável procrastinação. Sim, procrastinei pra escrever esse texto até onde não foi mais possível fugir dele.

Me ganhou pelo cansaço (trocadilhos baratos são tão irresistíveis quanto rimas pobres). Comecei a leitura de "Sociedade do cansaço" do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han nas férias há uns dois meses. Voltei à labuta, finquei as escaletas no chão e lá as deixei sedimentando ao relento. O tempo passou, outros textos saíram. E o trabalho continuo lá, por terminar.

O trabalho que tanto dignifica o homem, cansa. Dá trabalho. “Trabalhar cansa” é uma verdade imutável e o nome de um filme nacional que está na minha lista.

Preciso ver na folga do trabalho. Sim. Há trabalho na folga. Afinal, escrever é trabalho. E quem não consegue fazer da escrita um trabalho único, trabalha duas vezes. Ainda que pensem o contrário, que resumam trabalho ao braço, a carteira, ao relógio de ponto, que justifiquem e elevem nossa existência unicamente a esse conceito capitalista.

Somos milhões de desempregados. Sim, somos porque isso é um problema social que diz respeito a todos nós. Eu estou trabalhando de carteira assinada, você pode estar trabalhando no seu próprio negócio, mas o desemprego diz respeito ao social, ao todo, seja CLT, trabalho informal ou no empreendedorismo consciente (aquele organizado, planejado, de dentro pra fora) ou no empreendedorismo midiático (aquele que vendem como tendência, modinha, todo mundo quer, todo mundo pode).

Você deve conhecer alguém que é formado em X e trabalha em Y, que fez curso técnico em A e trabalha em Z, fez especialização na área tal, mas só achou oportunidade na zona kit (a que tinha).

Fundir trabalho e realização pessoal é uma prerrogativa para poucos, vista como um luxo utópico por uma imensa maioria. Trabalhar com aquilo que a gente gosta, com o que nos dar prazer, parece ser uma contravenção igual a ideia de casar por amor nos séculos passados. 

Eu, por exemplo, sou formado em Letras, fiz pós em História e Cultura e trabalho com finanças. Publico meus livros de forma “independente” (o terceiro será ainda esse ano). Aspas porque independência é uma palavra questionável, afinal a gente sempre acaba dependendo de algo ou de algum por maior que seja nossa autonomia.

Tão utópico quanto ser independente na linha reta da palavra, é viver apenas da escrita no Brasil de grandes escritores e (ainda) poucos leitores.  

O conceito secular de que o trabalho dignifica o homem me martela o juízo. Que trabalho? Que dignidade? O trabalho que vendem como o ideal é o trabalho que atende os anseios e a satisfação de quem o faz?

A dignidade que é oferecida como recompensa é a sensação sui generis de se sentir pertencente, honrado e produtivo numa cadeia de labor que credencia nossa experiência é o sentimento que realmente vale a pena ser buscado e sentido a cada novo despertar da manhã? 

A sanha por produzir, fazer, conquistar, acumular nos adoece aos poucos. A sociedade do cansaço na qual vivemos nos ensina desde pequeno a importância do trabalho, a necessidade de ter (cada vez mais) e a trilhar o caminho rumo ao sucesso que abarca tudo isso como se ela fosse realmente só isso.

E quando nos vemos sem essas conquistas, distantes da tão almejada felicidade com casa, carro, família e um bom emprego, a gente questiona a si mesmo e não a estrutura desse sistema predatório de trabalho, de consumo e de bem-estar.   

O sistema é tão bem fundamentado e naturalizado que faz a gente se sentir constrangido em qualquer momento de pausa, de ócio. Ainda que tal momento seja um direito registrado em carteira, validado pela lei trabalhista, benefício justo de anos de dedicação e entrega, a gente se sente mal por não estar fazendo nada produtivo para o mercado, para a máquina.

Acordar na hora que o corpo quer, contemplar o tempo passar, se entregar as banalidades do cotidiano, parar a máquina faz escorrer pelo ralo toda a dignidade conquistada. Eu não posso estar aqui se os outros estão lá.  

Meu desejo de viver da escrita é uma utopia real e mais do que a conquista de bens e de uma pseudo felicidade mercadológica e ilusória é o que me faz ter dignidade de existir todos os dias. Trabalhar é necessário, é bom e melhor ainda quando acompanhado de um prazer que vai além do que a sociedade dita e espera de nós.

Felipe Ferreira

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